sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

crônica da semana- anjos do

Anjos do arrabalde

O título é de um filme do desembaraçado diretor Carlos Reichenbach, rodado nos interregnos licenciosos da década de 1980. Fiz o resgate deste filme, não porque desejo explorar a estética libertária oitentista que fazia vibrar as claquetes do cinema nacional (para isso tem gente bem mais aquele de gabaritada na sétima arte do que eu). Uso do título só porque gosto dele mesmo. Apenas porque me agrada esta intenção angelical de traduzir a fleuma suburbana. Simpatizo com a sonoridade da composição e, claro, por causa deste apelo melodioso contido no título do filme, a mim me apraz a presença de alguns anjinhos que me são ensejados em flashbacks ritmados. 
Como naquela tarde, em frente ao colégio Alzira Pernambuco. 
Eu estava lá, com a minha geladeira, querendo vender o meu picolezinho. Mas havia por ali, uma pracinha de alimentação diversificada. Tinha merenda pra todo gosto e jeito. O unheiro, ó, fazendo a ‘fanchina’. Vendendo tudo... 
...O moleque se aproximou, pegou o bolinho mais úmido e brilhoso de óleo, pagou os centavos devidos. Acudiu-se a um papelzinho, acomodou a unha no leito da folha de papel, pressionou. Um filme líquido esparramou-se pelo papel madeirado e forjou em vários pontos uma textura transparente. O puro azeite. Com o esforço, o aluno bandou o salgadinho e expôs ao sol uma mistura amarelada de farinha, umas folhinhas finas e, aqui-acolá, grises pelotinhas de carne gorda. Apossou-se do vidro de pimenta do vendedor e aspergiu sobre a chaga amarela e sebenta, um tanto mais que o suficiente de licor pra ela ficar bem queimosa. Depois, abrigou-se à sombra de um poste e ficou ali, na fissura, comendo com gosto, o salgado. Rendendo, economizando a farofinha. Mastigando com os incisivos, saboreando com a ponta da língua. Salivando. 
Tava na ira, o zinho. Envolvido. Até que foi interrompido por um coleguinha: “me dá um pedaço, aí”, rogou o garoto, com um olho deste tamanho mirando o recheio anilinado. O outro, aviou-se rápido na resposta reiterada: “Não, não e não”; no retorno explicativo, “eu já te dei ontem” e na orientação imperativa, “sai fora”. A reação do menino, diante daquela negação tão intensa, foi de ligeiro desdém e de habilidoso deboche: “tá sovinando, né vai enrolar o queixo no vinte da unha, né. Tá pai d´égua. Tu sabes, quando eu tenho eu pago. Tu ainda vem me pedir”. E saiu melindrado, em direção ao portão da escola. Um instante depois, uma patotinha da mais péssima que estava na espreita deu um ‘arreia’ na unha do moleque (ele não tava de salvo). O vinte que ele estava comendo, com deleitoso egoísmo, saltou-lhe da mão e caiu na calçada perto de um cachorro vadio que batia ponto ali. Aí, já era. Os anjinhos dos arrabaldes nos ensinam: não presta sovinar. 
Eu também fui um anjinho apegado aos desafios da periferia de Belém. Encantava-me com a desenvoltura dos meninos e me deslumbrava com a noite iluminada. 
Minha avó, foi a primeira pessoa a me apresentar a noite. A me integrar à noite. Em tempos de Colorado RQ, de imagens chuviscadas em preto e branco, de esponja de aço na ponta da antena do aparelho de TV, minha avó deixava aquele encanto eletrônico recente para trás e me levava para o canto da Lomas com a Marquês, para apreciar o movimento. Um divertimento plástico, entorpecente. Os faróis dos carros multiplicando-se em flashes psicodélicos; o vento que minava do igarapé do Zé; os pontos de luz dos postes à base de vapor de mercúrio. O bar Pedra Noventa do outro lado da rua. Um microespaço, o canto da Marquês. As minhas primeiras noites de anjo...os arrabaldes... Belém. 

2 comentários:

  1. Queria eu ter essa volúpia, esse desejo arrancado das entranhas. Esse cio que comove com frases arrebatadoras fazendo desfalecer e entregando-se de vez ao orgasmo visceral. Palavras que saem remexidas, instigadas. Crônicas do dia, da semana, da vez. Crônicas!
    Palavras Sodré...

    Renato Gusmão

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  2. Eu queria ter esse vocábulo todo. Essas palavras cheia de vida , retrô e amor que faz a gente renascer no tempo que escreves. Aplausos, poeta.

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