sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

crônica da semana - dois legumes

Dois legumes

Ela chegou de vera e, como de costume, antes do Natal. Chegou daquele jeitinho: produzindo aquela textura de sorvete de bacuri no céu. E se estirando, se estendendo pelo dia e varando a madrugada. Preguiçosinha, cadenciada, mimosa e doce. 
Como de costume, nos encantamos. Fizemos versos de boas vindas, recitamos prosas sensuais, cantos maliciosos. Registramos cada aproximação com fotos sedutoras, relatos ansiosos, confissões apaixonadas, prazerosas descrições. Trouxe um friozinho bom e grilos ensaiados para cricrizarem as nossas noites. A nossa chuvinha. 
É o tempo dela, diria a minha mãe. Tempo de perder sombrinha e guarda-chuva em qualquer canto, de tirar aquela velha Hering manga-comprida do armário, de reivindicar uma costelinha toda noite... Tempo de esquentar pés com pés e de chamegar... 
Todo ano, o que nós chamamos de inverno amazônico, é a nossa redenção. A nossa forra contra a conta de luz. Alguns meses sem ventilador ou ar condicionado (rá, rá, rá, rá). Mas tem o seu dito porém. 
Tempo chuvoso é uma faca de ‘dois legumes’. Rola um revés no retinir reincidente que reina em cada risco de nuvem que rompe, que ruge, que rege o rego do riozinho raso e rude que rodeia nossa aldeia. Parte, uma parte bem considerável de Belém vai pro fundo junto com nossos instantes de contemplação. Passa-se num triz, do contentamento à apreensão quando o nível da água começa a subir além da sarjeta. 
E hoje em dia a coisa está de uma forma tal, que andar com a chinela na mão e a calça enrolada até o joelho não é só prenda de quem mora nas baixadas. Bairros da alta granfinagem, as novas Beléns, e até os aléns da planície (como o eixo da BR) experimentam também este infortúnio. 
A minha valência é que, na Pedro Miranda, aquele que já foi um dos pontos mais críticos, que fica entre a Lomas e a Alferes Costa, não alaga mais. Isso me acalenta. Me dá ânimo para acreditar que este exagero de molhado pode sim, um dia ser resolvido. Porque, minha gente, aquilo ali já foi um marzão. 
(Faz um tempinho, já. Ainda cortejava minha companheira Edna. Ah, o amor! Eu me abalava da Mauriti para a baixa da Pedreira toda santa noite. Por agora, era uma provação. Quando chegava na Itororó, a marola já se assanhava ‘lembendo’ a canela. Das duas uma: ou eu encarava, pela direita, a minha futura sogra, que tinha uma venda de cachorro-quente, o qual ela sugestivamente batizara de hot-dog, na esquina da Pirajá, em um trajeto que me garantia umas pontes seguras e poucas chances de entrar na água; ou investia pelo flanco esquerdo, me equilibrando em algumas balaustras, nas grades das casas, nas pontas de escadas, pra não perder o prumo e mergulhar, porque ali, era o puro profundo mesmo. Minha namorada morava na Perebebuí, próximo a mãe, mas não com a mãe. Por aí a gente tira o porquê da minha opção de ir sempre pelo lado comunista da rua, com a água por acolá. Era um estirão de sacrifício, mas eu encarava. Medo maior era o de prestar conta com a fera, ali no hot. 
Quando tornava do outro lado, uns quantos sustos depois, já chegava me agoniando. Minha namorada vinha obsequiosa com um punhado de sal e uma faquinha para retirar as ‘chamichugas’ que chegavam de carona na minha perna. Era uma peleja. Mas depois, vinha o friozinho, o pés com pés, o chamego...‘a prenda imensa dos carinhos’). 
A chuva leva e traz. É dinâmica. Se todo ano chove acima do previsto, por que não calçamos as sandálias da humildade e nos empenhamos em redimensionar o tanto ‘previsto’? Talvez nos esmerássemos mais nas artes de prevenção e cuidados com a nossa cidade. 
 

Um comentário:

  1. oi sodré, eu amo chuva, mas se pudesse ficar em casa quando o dilúvio está caindo lá fora iria amar muuuito mais. detesto ter que tirar a sandália e enrolar a calça. boa semana!!!

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