domingo, 10 de dezembro de 2023

crônica da semana - Durval, comprou?

 Comprou, Durval?

A gente tá bem assim, começando a semana, dia chuvoso, dezembro mostrando pra que veio, ressaca de mais uma pixotada do Botafogo, força, fé e foco na segundona. Nem seu Souza para o acaso, e com umas boas pautas na biqueira de se tornarem o tema da crônica da semana. Até que uma carapanã atentada de início de noite vem com beira e ataca. Sofro. Me tira de rota. Num pulo, vou atrás do remédio pra tratar a bicha. À primeira e dolorida ferroada, fechei tudo e joguei o produto em cada canto do quarto, na certeza de uma gotinha nociva acertar as contas da sacrista.

Enquanto o veneno agia, dei um tempo na sala, tomei uma aguinha, puxei prosa com a família sobre o friozinho do dia, arrisquei uma zapeada na TV aberta. E que surpresa! Dei com a exibição de Durval Discos, filme que marcou com graça, humor e uma inusitada apreensão, a nossa família, ainda nos tempos das crianças pequeninas, na Vila dos Cabanos. E foi assim, a modo de uma surpresa agradabilíssima para arrematar a cena da injustiçada segunda-feira.

O filme é de 2003. Já assisti em outros meios, tenho o DVD, mas assim no repente de uma olhadela despretensiosa no encarreirado de canais da TV, tem outro valor. O impacto é potencializado por um singular chamamento. Pelo caráter do encontro, sem aquela agenda liminarmente determinada, sem o dolo de um programa marcado no tempo e na decisão, o fato da gente ficar de palmo em cima com um filme tão notadamente marcante, parece uma coisa né. De alma, de sentido oculto. Por aí a gente tira: não é a gente que escolhe o filme. O filme é que escolhe a gente.

Foi logo que deixei a pauta pra outra hora, desencanei da carapanã encurralada sob torturada de uma arma química lá dentro do quarto e me ajeitei ante a telinha. Vi tudinho de novo. Renovei as risadas, fiz menção de espanto quando o roteiro dá uma guinada, cantei junto com os personagens, todas a músicas da trilha, e em especial, dei um reforço grave à voz de Zé Rodrix em Mestre Jonas. Fiz eco em todos os bordões que, inclusive herdamos e utilizamos até hoje nas nossas prosas em família. Pérolas como a do vendedor da loja, “bicicleta a gente não embrulha”; Ou na retórica do personagem principal tentando convencer um cliente a desistir do DVD e comprar um vinil, “Dá pra ver a faixa... e tem o lado A, e tem o lado B”; E na profunda, substanciada, nervosamente prática pergunta que a mãe fazia para o filho cada vez que um cliente saía da loja de discos, “comprou, Durval?”. Esta pergunta ganhou outras roupagens aqui em casa. Toda vez que alguém sai em uma missão, quando volta, não indagamos na objetividade da tarefa. Inquirimos com estilo: comprou, Durval? O sucedâneo da resposta vem bordado de simbologias.

E são essas preciosinhas histórias que se transformam em sentimentalidades poderosas dentro da gente, quando cai essa chuvinha doce na chegada do dezembro.

É o mês que me traz uns chiliquitos de emoção. Pode ter por base o espírito natalino, é provável, mas tenho pra mim que me amolece as razões, me atiça as sensibilidades, também por causa do choque térmico. A gente sai de um calorão amazônico úmido e desliza, num trisca, para a friagem e a chuvinha intermitente. Um blend de motivos que nos confina em casa, nos inspira doces lembranças, nos envolve em nostalgias. E ainda tem a ajudazinha da carapanã que nos atenta a vida, nos tira da lida e nos coloca diante das maravilhosas e duradouras invencionices que se criaram em família, nos acompanham e nos divertem. Quando vi que tava passando o filme, chamei minha galerinha pra ver comigo. Passei zap avisando meu filho, que mora em outro bairro. Dormi alegre e satisfeito com a eficácia psicológica desta rememoração.

No outro dia, quis saber se meu filho viu todo o filme. Liguei e perguntei no costume da graça: comprou, Durval? 

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