Comprou, Durval?
A
gente tá bem assim, começando a semana, dia chuvoso, dezembro mostrando pra que
veio, ressaca de mais uma pixotada do Botafogo, força, fé e foco na segundona.
Nem seu Souza para o acaso, e com umas boas pautas na biqueira de se tornarem o
tema da crônica da semana. Até que uma carapanã atentada de início de noite vem
com beira e ataca. Sofro. Me tira de rota. Num pulo, vou atrás do remédio pra
tratar a bicha. À primeira e dolorida ferroada, fechei tudo e joguei o produto
em cada canto do quarto, na certeza de uma gotinha nociva acertar as contas da
sacrista.
Enquanto
o veneno agia, dei um tempo na sala, tomei uma aguinha, puxei prosa com a família
sobre o friozinho do dia, arrisquei uma zapeada na TV aberta. E que surpresa! Dei
com a exibição de Durval Discos, filme que marcou com graça, humor e uma
inusitada apreensão, a nossa família, ainda nos tempos das crianças pequeninas,
na Vila dos Cabanos. E foi assim, a modo de uma surpresa agradabilíssima para arrematar
a cena da injustiçada segunda-feira.
O filme
é de 2003. Já assisti em outros meios, tenho o DVD, mas assim no repente de uma
olhadela despretensiosa no encarreirado de canais da TV, tem outro valor. O
impacto é potencializado por um singular chamamento. Pelo caráter do encontro,
sem aquela agenda liminarmente determinada, sem o dolo de um programa marcado
no tempo e na decisão, o fato da gente ficar de palmo em cima com um filme tão
notadamente marcante, parece uma coisa né. De alma, de sentido oculto. Por aí a
gente tira: não é a gente que escolhe o filme. O filme é que escolhe a gente.
Foi
logo que deixei a pauta pra outra hora, desencanei da carapanã encurralada sob
torturada de uma arma química lá dentro do quarto e me ajeitei ante a telinha.
Vi tudinho de novo. Renovei as risadas, fiz menção de espanto quando o roteiro
dá uma guinada, cantei junto com os personagens, todas a músicas da trilha, e
em especial, dei um reforço grave à voz de Zé Rodrix em Mestre Jonas. Fiz eco
em todos os bordões que, inclusive herdamos e utilizamos até hoje nas nossas
prosas em família. Pérolas como a do vendedor da loja, “bicicleta a gente não
embrulha”; Ou na retórica do personagem principal tentando convencer um cliente
a desistir do DVD e comprar um vinil, “Dá pra ver a faixa... e tem o lado A, e
tem o lado B”; E na profunda, substanciada, nervosamente prática pergunta que a
mãe fazia para o filho cada vez que um cliente saía da loja de discos,
“comprou, Durval?”. Esta pergunta ganhou outras roupagens aqui em casa. Toda
vez que alguém sai em uma missão, quando volta, não indagamos na objetividade
da tarefa. Inquirimos com estilo: comprou, Durval? O sucedâneo da resposta vem
bordado de simbologias.
E
são essas preciosinhas histórias que se transformam em sentimentalidades poderosas
dentro da gente, quando cai essa chuvinha doce na chegada do dezembro.
É
o mês que me traz uns chiliquitos de emoção. Pode ter por base o espírito natalino,
é provável, mas tenho pra mim que me amolece as razões, me atiça as
sensibilidades, também por causa do choque térmico. A gente sai de um calorão
amazônico úmido e desliza, num trisca, para a friagem e a chuvinha
intermitente. Um blend de motivos que nos confina em casa, nos inspira doces
lembranças, nos envolve em nostalgias. E ainda tem a ajudazinha da carapanã que
nos atenta a vida, nos tira da lida e nos coloca diante das maravilhosas e
duradouras invencionices que se criaram em família, nos acompanham e nos
divertem. Quando vi que tava passando o filme, chamei minha galerinha pra ver comigo.
Passei zap avisando meu filho, que mora em outro bairro. Dormi alegre e
satisfeito com a eficácia psicológica desta rememoração.
No
outro dia, quis saber se meu filho viu todo o filme. Liguei e perguntei no
costume da graça: comprou, Durval?
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