O mundo será melhor
“Quando o menor que padece
acreditar no menor”...
O
fato deu-se, há anos, quando inventei a marmota de ir com minha namorada, a um
restaurante famoso que havia em Belém, especializado em massas. Aconteceu o que
a gente, pelo comum social, infelizmente, reconhece que não é raro acontecer. E
não tem quem me tire da cabeça que foi dolo com a motivação espelhada no raso
entendimento da desigualdade. Como se, no mais condimentado estilo de
malinagem, nos servissem o aviso de que aquele não era o nosso lugar. Pedimos
uma lasanha.
(“Eu acredito que o mundo será melhor/Quando o
menor que padece, acreditar no menor”, diziam os versos da canção que animava
nossos encontros de jovens cristãos em retiros, reuniões e até nas missas
realizadas na capela da Escola Salesiana. Era meu canto preferido. Tinha um quê
comunista, comunitário, sinalizava com a confiança e a solidariedade entre os
iguais. Davam uma potencializada na minha fé, os primeiros acordes dessa
canção).
Quando
dei a primeira prova, chega ardeu. O prato foi temperado, sem pena, com,
imagino, a metade do sal existente em todo mundo conhecido. Tava bom era pra
boi comer, que diga, tava não. Era de tal forma carregado, que o preparado servido
para o gado, em cochos pelas grandes fazendas, certamente conta com compostos
mais insossos.
A
gente que não tinha o costume (jantar nessa pizzaria era uma extravagância,
coisa de menino besta quando recebe o décimo. Lasanha então, era um di cumê que
eu só tinha ouvido falar). Percebemos que estava minada de sal, mas sei lá,
continuamos comendo, vai ver que é assim mesmo nesses restaurantes chiques, ou
lá na Itália, que fosse. Mais tarde, em outras experiências, e também farejando
a maldade praticada naquela noite, descobriria que não. Dou minha cara a bufete
se não fomos mesmo é vexados pela turma do baixo clero do restaurante. Gente
igual a gente, que não nos admitia ali. Aqueles risinhos sádicos, os olhares
maliciosos, cochichos suspeitos, ao largo, davam a letra da vilania. Ainda mais
que nos denunciamos como vindos da baixada.
Era
época da macrodrenagem. Os sapatos nos delatavam. Traziam um contorno bem
marcado por um cordão de laminha seca, resultante dos breados que tínhamos que
atravessar pelos regos de rua aterrados, até chegar no asfalto. Àquela ocasião,
era tudo na piçarra. Dava uma chuva e ficava aquele liso melado por uns bons
estirões. Imagino que os colaboradores do restaurante, acostumados com outras
peles, roupas e jeitos, quando viram aquele neguinho entrar com uma pequena até
jeitosa e, todo garboso, ocupar uma mesa, logo que miraram nos sapatos.
Identificaram um intruso, peão melhorado, um zinho apresentado só querendo ser
o que a folhinha do ano não marca. E toma-te sal. Para causar aquele clima de
nunca mais voltar lá mesmo, como de fato, não voltei.
“Eu
acredito que o mundo será melhor...”
O
tempo me mostrou que há uma distância inquietante dos versos da canção, numa
reunião exclusiva e fervorosa de jovens, para os reais contornos sociais, ou os
sentimentos subcutâneos de nossa apartada humanidade. Não nos damos com nossa
parelha. Nos esquivamos das semelhanças o quanto podemos. Optamos pela disputa
aos primeiros movimentos de uma convivência, ao contrário de rumarmos à
partilha, à compreensão e à aplicação das similaridades. É só ver, todo
abençoado dia, as menções de parceiros que pisam no pescoço da mãe para
alcançar algo, ou reduzem a nossa importância, o nosso relevo, nos ombreamentos
táticos pela sobrevivência, seduzidos pelo sistema, domados pela competição. Aqui
ali, a gente flagra gente humilde abrindo bolsa de gente humilde em lojas de
departamento. Constrangendo, humilhando.
A
canção que cantávamos na igreja, apelava para que os pequenos e iguais se
reconhecessem, e caminhassem juntos em busca de um mundo melhor. O projeto
macrodrenagem resolveu o desconforto da laminha nos sapatos e asfaltou as ruas
no entorno da Escola Salesiana. Até hoje quando me convidam para ir a uma
pizzaria, me tremo todinho.
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