sábado, 6 de maio de 2017

crônica da semana - eiras beiras e fulôs

Eiras, beiras e fulôs de laranjeiras
Vai longe o dia que arrumei minhas coisinhas e caí no trecho para viver de vera, o mundo do trabalho. Este um de carteira assinada, férias, décimo, que arrisca agora, ir pro beleléu.
A poesia, a escrita do coração, a febre lírica, sutilezas e devaneios, ombrearam-se às eiras, beiras e fulôs de laranjeiras; O certo é que nem termos, nem lei, vingam quando é chegada a hora de partir. Eis que as minhas roupas se encaixavam sem resistência dentro da mala na tarde molhada de uma segunda-feira do mês de fevereiro de 1983.
Lá do passado, retiro a mais clara dedução. O momento de arrumar a bagagem, olha, não é fácil não. É de inspirar versos dos mais certeiros, dos mais imbricados.
E trago de lá esta passagem. O cheiro canforinado das roupas que hoje, não me cabem mais. E, por outro lado, pelo lado indomável dos bens afetivos, é roupa que cabe arrumadinha na minha memória.
Naquela terça, fiz uma última caminhada pela Pedreira e Sacramenta. Como era um dia de semana, pouca gente estava em casa. Quem eu encontrava, era agraciado com palavras doces de despedida. Meu melhor amigo me acompanhou no estirão. Demos uma volta enorme, a pé, fazendo um traçado absolutamente emocional.
Quando chegamos em casa, o cansaço era grande, a fome maior ainda, e a comida pouca. Já havia passado a hora de comer. Mamãe ajeitou o que tinha e demos de pau numa farofa de ovo e um caldo de feijão. Foi a engalanada refeição da partida.
Esperamos um pedacinho, após o almoço, para fazer a digestão, e a seguir, eu me entreguei ao rito.
Minhas coisinhas estavam todas na estante que mamãe tinha comprado, mas só havia pago uma prestação além da entrada (dali a alguns dias o caminhão da loja apareceria na frente da vila para levar o móvel de volta por falta de pagamento).
Além das roupas, fui organizando na mala meus livros, a cópia do trabalho de conclusão do curso, que descrevia uma viagem de campo ao ramal das Canas em Ourém e que eu tinha como uma parte forte do meu raquítico currículo; alguns cartões com motivos católicos que meus amigos do movimento jovem haviam me presenteado na missa de domingo e meu troféu.
Na época eu era um campeão. Ostentava um troféu pelo primeiro lugar no concurso de poesia do colégio Souza Franco. Quando saquei do ponto mais nobre da estante o troféu e intentei lançá-lo num cantinho da mala, o coração disparou. Eu estava saindo da minha querida Belém, para uma terra distante; deixando meus amigos, minha mãe, minha poesia, o meu título de campeão. Não deu outra. Nessa hora, me danei a chorar. Foi um choro farto, pleno, um extravasamento que denotava toda a minha tristeza com a necessidade premente da partida. Com a necessidade urgente de trabalho (este um que agora arrisca desaparecer). Chorei que solucei.

Poderia ter estudado mais, tentando outros rumos, aprimorado minha escrita, elaborado minha poesia. Mas não! Tô aqui tomando fôlego, no passado, para garantir a continuidade do trabalho de vera (este um que conquistei, com carteira assinada, férias, décimo, farofa de ovo, eiras, beiras e fulôs de laranjeiras). 

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