segunda-feira, 15 de maio de 2017

crônica remix- vestida de azul e branco

Vestida de azul e branco
Levando um sorriso franco pelos caminhos que iam dar no Instituto de Educação, Luzia encantava com os seus passos educados, o insubordinado seringueiro.
Pra frente que era, o homem do mato, mais velho e mais experiente, mas indiscretamente apaixonado, não resistia e acompanhava, com evidente interesse, o inocente caminhar da normalista de 16 anos rumo à Escola Normal.
No início da noite, enquanto as moças passeavam faceiras pela praça à beira do rio, ele juntava uns amigos, arrumava um violão e se declarava para Luzia cantando os versos de Nelson Gonçalves que tinham uma normalista como musa inspiradora.
Não conhecia limites, o coletor de látex, fazia e acontecia para chamar a atenção da jovem estudante. Aproximou-se da casa, conquistou os pais, os irmãos, superava-se em gentilezas para a família.
‘Mas a linda normalista não pode casar ainda, só depois que se formar’, alertava a poderosa voz de Nelson Gonçalves na canção. E ele esperou.
Nessa época, Luzia ainda não era a mamãe. Era uma estudante do curso normal querendo ser professora lá nas terras distantes do Xapuri e Manoel Sodré, atentado que só ele, ainda não era meu papai que tão pouco conheci, era um coração entregue, dominado, submetido aos caprichos da paixão.
O seringueiro, que de passagem se diga, era realmente um homem carismático, boa praça, fez porque fez que acabou ganhando a simpatia e o amor da doce normalista.
Casaram-se. E foi tudo direitinho, como manda o figurino. Com véu, grinalda, e lua de mel na capital do então território do Acre. Depois vieram os filhos...
Outro dia, coloquei o disco na vitrola, chamei os meus meninos e disse, olha aí, foi assim que a nossa história começou, com o Nelson Gonçalves fazendo a trilha sonora.

Luzia enviuvou aos 28 anos. Desde então, viveu apenas para as crias. Deu as costas para o mundo e dedicou a vida única e exclusivamente ao papel de mãe.
Neste ano de 2008, faz dez anos que Nelson Gonçalves nos deixou. Naquele dia, quando ouvi pelo rádio a notícia da morte do cantor, senti que os rastros deixados pela felicidade que um dia existiu, estavam por fim, se apagando.  Pressenti que a linha frágil, mas benéfica, útil que ligava a história da cândida normalista lá do interior do Acre com a mãe dedicada prostrada, agora, num leito de hospital em Belém, estava, a partir daquele momento, se rompendo.
Naquele instante, peguei a mão de minha mãe (as mãos mais lindas do mundo), e pedi que ela cantasse aquela canção do Nelson. Por quê? - perguntou ela surpresa com aquela idéia absurda. Porque, mamãe, respondi pausadamente, porque quero guardar a tua voz aqui dentro do meu coração cantando a canção que um dia te fez feliz.
A minha mãe não cantou. O ar lhe faltava para articular as palavras (e tanto que ela gostava de cantar!). E eu também não lhe falei que o Nelson Gonçalves havia morrido.
Por aqueles dias (como hoje, véspera do Dia das Mães), eu quis fugir, me perder no mar sem fim e chorar escondido. Mas no14 de maio, dia do meu aniversário, tive que ser forte. Não escapei ao último encontro com a bela normalista que, certa vez, se apaixonou por um seringueiro bruto. Comemos o bolo de caixinha que a minha irmã fez e cantamos um parabéns austero, como num ritual de despedida, até que ao final da tarde a luz que vestia de azul e branco o olhar da minha amada mãe foi se apagando...

No dia seguinte, o sorriso franco era apenas uma lembrança de uma canção ausente, e minha mãe, para o meu total desespero, descansava serena, para sempre em paz, em meus braços. 

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