sábado, 23 de agosto de 2014

crônica da semana - tabaco

Os amantes que mascavam tabaco
Seu Jorge era um inovador, um revolucionário, mudou o modo de ser e de estar de boa parte dos feirantes de Belém. Quando o conheci, era padeiro da Aveirense, panificadora que ficava na esquina da antiga Independência com a Alcindo Cacela e que, como o nome denota, homenageava Aveiro, terra lusa distante abrigada à ria do Vouga. Lá, conheceu minha tia Fabiana, uma das maiores doceiras que esta terra das mangueiras conheceu. Virou meu tio. Mas por força do hábito e dos distanciamentos protocolares que as funções na panificadora impunham, o tratamos até hoje por “Seu Jorge”, minha tia Fabi, inclusive, em que pese os mais de 40 anos juntos.
Depois que saiu da Aveirense, Seu Jorge foi trabalhar na feira. Morávamos todos na Mauriti e eu, bem gitinho que era, mas viradinho, fui com ele.
Naqueles tempos a feira era bem diferente, os vendedores expunham seus produtos em tabuleiros montados em cavaletes de madeira crua. Seu Jorge era muito dedicado, determinado. Vendia confecções, não tinha como os verdureiros, os açougueiros, os peixeiros, a urgência das madrugadas, mas armava a barraca todo dia antes do sol nascer. Quatro e meia desescorava o carrinho de mão da cerca, arrumava as caixas com as confecções uma sobre as outras, amarrava bem amarradinha a pilha e saia empurrando o carro. Eu na frente dando o apoio moral e aqui e ali dando a direção porque ele não via o trajeto direito. Conduzia o carrinho olhando pelos lados, guiando-se pela sarjeta, já que a pilha de caixas o impedia de ver o estirão de frente. Um quarteirão nesta batidinha. Chegávamos e num trisca, o estrado estava armado, depois era só arrumar. Blusinhas de meia aqui, calcinhas de florzinhas ali, shortinhos de elástico acolá, cuecas de copinho mais pra trás. Tudo pecinhas baratas, populares. Nessa hora eu ajudava mesmo. Arrumava tudinho, ficava ali ‘entretido’ colocando uma peça num lugar; outra, n’outro... e quando me espantava o sol já estava torrando meu cocuruto. E daí em diante era só quentura. A manhã toda que a gente ficava na feira era esse sofrimento ardido embaixo dum solão de lascar. Aí, o tino apurado, a sagacidade, a visão de negócio do Seu Jorge, emergiu. Mas não deu um mês, Seu Jorge acrescentou à nossa carga no carrinho de mão, dois guarda-sóis. Pronto. Resolvido o problema. Além de nos proteger do sol, o artifício ainda nos possibilitava fincar cruzetas na estrutura. Ganhamos mais espaço para expor nossas peças. Ali a gente pendurava as camisas de botão para os rapazes, as batinhas para senhoras, conjuntinhos femininos ornados em ilhoses doirados...Coisinhas mais aquelas de finas e sofisticadas.
O uso do guarda-sol logo se espalhou pelas outras feiras da cidade, mas asseguro que a idéia pioneira, foi de seu Jorge.
Por aqueles tempos o traçado permitido pela prefeitura para as bancas era da calçada para dentro da feira. As bancas eram posicionadas lado a lado e dominavam todo o perímetro em 90 graus da calçada que compreendia a quina formada pela  Mauriti e Pedro Miranda. À frente das bancas, o prédio do Mercado e, lá dentro, os talhos de carne. Éramos regularizados, pagávamos carnê de locação, gente para guardar os estrados, vigia. Era tudo nos conformes.

Mas havia também uma ocupação informal. Era uma concentração de bancas exatamente atrás da gente, dando frente para a rua. Muita gente foi se chegando, armando a banca no leito da Mauriti e se arrumando na beirinha da calçada, com um banquinho, uma cadeirinha, uma caixa para sentar, fazer as contas, classificar a mercadoria. Não eram clandestinos, o fiscal abonava o negócio mediante uma contribuição pecuniária, segundo ele, insuspeita. Atrás da banca do Seu Jorge, dividindo o meio-fio com a gente, ficava a barraca do casal. Eles mexiam com o de cumê, tomate, cebola, temperos...Faziam os  lotes naquelas embalagens tramadas em fios plásticos vermelhinhos finos. Trabalhavam direitinho, pagavam o fiscal, vendiam produtos novos trazidos cedo da Ceasa, varriam o espacinho deles. Ganhavam o sustento honestamente. Formavam um casal já bem maduro, mas demonstravam cumplicidade, exibiam-se em carinhos e afetos, eram atenciosos com os fregueses, nossos vizinhos de calçada, companheiros na lida e mascavam tabaco.

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