quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

crônica remix - Michey Rouke

Salvo pelo gongo
Nos últimos anos venho me acostumando, perigosamente, com os confortos da tecnologia. Foi-não-foi me estiro na rede e fico pra lá e pra cá, de controle na mão, selecionando, voltando tudo ao começo, adiantando para um final feliz, dando uma câmera lenta (era assim que a gente chamava antes o tal de slow motion) naquela cena empolgante ou naquela seqüência mais eletrizante. Perigoso esse lance de ficar refém das comodidades que o DVD proporciona. Sinto muito, por esta minha pouca resistência, porque o que eu dou valor mesmo é no escurinho do cinema.
Gosto do clima, do ambiente climatizado, do som dolby stereo,   do gigantismo das imagens e, é certo, desta indisfarçável nostalgia que emana dos quatro cantos da sala escura.
Esta minha inclinação para a sétima arte vem lá dos idos de oitenta e poucos quando eu fazia de um tudo para entrar nas programações do Paraíso (ou numa alusão mais historicamente justa ao espaço, do “Cine Paraíso”, aquele que ostentava ao pé da telona a frase: “faça deste cinema o seu paraíso” e ao final dos dizeres exibia uma pintura pré-renascentista de Eva fazendo malabaris com a maçã e espezinhando a serpente). Desde lá, fico prestando reparo nos grandes atores, nos diretores mais geniosos, nas atrizes mais versáteis.
Dessas nuances da interpretação, acho  o caráter camaleônico dos atores, um valor dos mais impressionantes. Aquela interpretação do Robert de Niro em Touro Indomável é coisa para se perpetuar na história do cinema (também com a direção draconiana do Scorcese, interpretar um lutador que começa o filme como peso pena e termina como um obeso mal educado e desregrado era a missão única de de Niro. Perfeito. Perfeito). Para estes casos, o cinema tem reservado alguns insuperáveis talentos. Para outros...
Acho que o drama sobra para aqueles atores que têm que se superar. Para aqueles atores que ficam marcados por um personagem e que dele, não conseguem se livrar ou, se conseguem, demoram um tempão para apagar qualquer traço daquela interpretação. É clássico o caso de Sean Connery, o eterno 007 e o mais charmoso, aquele que mundeava qualquer vilã com aquele arrasador soerguimento de sobrancelha. Connery superou o estigma de Bond e reapareceu pleno, íntegro como o frei Guilherme de Baskerville em O Nome da Rosa, referendando uma brilhante carreira.
Um caso que merece destaque é o do ator Mickey Rourke. Ele arrasou nos anos 80. Mas sempre em papéis extravagantes. Restaurou a rebeldia em “O selvagem da motocicleta”, reinventou as funções do morango e do cubo de gelo em  “9 e ½ semanas de amor” nas tórridas cenas com a louríssima Kim Basinger e  fez o atormentado detetive Angel em “Coração satânico”  (com brilhante direção de Alan Parker).
Acontece que depois dessas estripulias todas, o pobre do Mickey Rourke se abalou pra fazer o papel de São Francisco, em “Francesco”. Aí rolou aquela coisa do estigma. Com aquele olhar pidão, com aquele cinismo e com aquele semblante animal, como o ator iria resistir a um papel límpido, puro de santo. E o diretor, muito amigo ainda inventou uma cena em que o pobre, tentado pela carne, se purga com uma aplicação impiedosa de um chumaço de gelo sobre as partes. Pronto, um pé pra reviver a história do gelinho com a Kim. Resultado. O homi abandonou a profissão e se meteu no boxe.

Passou um tempo sumido das telas. Soube que voltou agora com o filme "The Wrestler"  e com a cara toda remendada de boxer, arrancou aplausos no Festival de cinema  de Veneza. Dizem até que é sério candidato ao Oscar. É, podemos pensar que o Mickey Rourke foi salvo pelo gongo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário