quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

Cronica remix- Bubuia

De Bubuia

A foto de capa d’ O Liberal, capturada de um cordial dia 25 de dezembro, mostrava uma garota flutuando nas águas do furo do Nazário, a rebocar uma boneca.
O furo do Nazário é um braço de rio que corta boa parte da Ilha das Onças, naquele dia, palco da campanha de Natal idealizada por um grupo de cidadãos bem intencionados.
A empreitada procurava levar a alegria do Natal às crianças ribeirinhas. Nobre atitude, mas com um tropeço grave no enredo: o direito aos presentes era, por vezes, condicionado aos mergulhos dos pequenos.
Quando o barco em que eu viajava cruzou com o do pessoal da boa ação, dei que os presentes estavam sendo jogados sem o exigido compromisso com a pontaria e, por isso, quase sempre, amerissavam. Isto fazia com que a garotada se abalasse a nado, ao encontro dos brinquedos cruzando o  banzeiro provocado pelas embarcações.
Uma cena que se repetiu de fora a fora pelos furos do Nazário, Piramanha e em outras tantas entradas de água daquelas paragens.
Naquele dia, topei com dois barcos da trupe filantrópica, eu, indo de Belém para Barcarena, eles, no sentido de Belém. E o que presenciei buliu com a validade da intenção.
O ato de deixar os brindes à deriva, tenho pra mim, não fazia parte das vontades dos organizadores, mas foi  determinante para evidenciar o caráter fluido, literalmente líquido, das relações possíveis entre os embarcados urbanos, e os outros, os ribeirinhos e, ainda, para revelar a duvidosa produtividade da tarefa (dava pena avistar, pelo caminho, de quando em quando, um pacotinho, de bubuia, sem criança para alcançá-lo).
Faço rotineiramente essa viagem que, forjada pela beleza da Ilha das Onças, deixa de ser uma viagem e vira, sempre, um agradável passeio.
Por estes dias, cruzei a ilha de novo, pelo furo, e a mim, me veio a imagem da garota emergindo com sua boneca pescada das águas, parecendo uma Iara vencida, um mito inocente, indefeso, abatido por plásticos encantamentos, dissolvido nos ácidos equívocos da benemerência.
Procurei, agora, longe dos humores natalinos, sonhos infantis pelos escaninhos da ilha, mas encontrei o arranjo utilitário dos açaizais, a funcionalidade dos matapis estrategicamente localizados, as criativas (mas impotentes) engenharias montadas contra a agressiva erosão que, implacavelmente, redesenha as margens. 

Dei que ali, são necessários mergulhos diários, não em busca de preciosidades impermeáveis, sem pontaria, largadas ao sacolejo da maré, mas em busca da sobrevivência e de um modo digno de encarar a realidade. Uma realidade diferente, especial, poucas vezes entendida, outras tantas, distorcida. Um modo de prover a vida, que longe dos sonhos estratosféricos inspirados pelo desvario consumista (aqueles sonhos relegados às veredas do aningal), está prudentemente subordinado às limitações impostas pelas margens dos rios, que, antes de serem uma provação (como, equivocadamente pensamos), são, por certo, uma bênção. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário