Tomara que chova
Se
bem me lembro, não foi declarado Estado de Sítio na cidade, mas deu-se tudo
como se fosse. Era helicóptero dando rasante, carros pretos circulando
amedrontadores, policiais despistados filmando todo mundo, ruas interditadas,
olhares intimidadores em cada esquina. Era o julgamento dos 13 posseiros do
Araguaia.
O
caso ficou famoso, no início da década de 80, porque resultou também, na
expulsão dos padres franceses Aristides Camiou e Fraçois Gouriou.
Na
época eu defendia uns cobres como instrutor da colônia de férias na Escola
Salesiana do Trabalho. Por causa deste emprego temporário não participei de
todas as mobilizações. Só me liberei a partir do meio-dia e quando cheguei ao
teatro de operações, parte dos manifestantes já estavam confinados (sitiados) na
igreja da Trindade.
No
dia anterior, o Movimento pela Libertação dos Presos do Araguaia (MLPA),
reunido na sede do arcebispado (onde hoje está instalada a galeria Fidanza e o
Museu de Artes Sacras), havia deliberado uma grande ação popular em apoio aos
presos do Araguaia. Eu saí da reunião, já conhecendo todos os pontos de
encontro. Mas o primeiro deles, caiu naquela noite mesmo (tínhamos infiltrados
na reunião) e ao passar pela praça da República, fui logo preparando o
espírito. A praça, do IEP até a sedutora esquina da Riachuelo, estava tomada de
polícia.
A
Trindade era a segunda alternativa. Chegando lá, encontrei com minha amiga Elza
Fátima e nos postamos em frente ao prédio da OAB. A polícia controlava toda a
parte anterior da praça, logo à frente da igreja. Era início da tarde, o sol
ardendo e eu não tava gostando daquela história. Percebi que um comandante, do
outro lado da rua nos olhava com olhos maus. Chamei Elzinha e propus a
retirada. Mas foi batata. Um instante depois o comandante ordenou o ataque.
Cães policiais excitadíssimos saíram abocanhando quem encontravam pela frente,
inclusive o rapaz que estava bem do meu lado e que não quis correr com a gente.
Varamos por trás das Lojas Americanas, entramos pelos corredores e disfarçamos
por ali, olhando uma coisa ou outra. Na praça, o pau cantou.
Dali,
rumamos para o outro ponto combinado. Igreja das Mercês. Boa parte dos
remanescentes da ação já estava lá (os outros ou estavam presos na Trindade ou
estavam machucados por causa do confronto na OAB). Na Mercês, havia uma infra.
Água, comida, panfletos a serem distribuídos à população. Mas o governo não
queria agito de jeito e maneira. Tão logo chegamos na escadaria da Mercês,
despontou na esquina um ‘tomara-que-chova’ assim de policiais do Choque. Tudo
de metralhadora na mão. A galera não arredou o pé. Eles então desceram e usaram
as armas como calço para nos empurrar pra dentro da Igreja. Já pensou se um
troço daqueles dispara? Aquilo foi demais pra mim. Dei um passamento. Suava
frio, tava pálido. Alguém diagnosticou que era fome. Minha amiga Eliza Sena me
levou pra sacristia e me atendeu com uma pratada de feijoada. Tomei um caldinho,
mas na hora que eu ia atacar de vera, houve o comando para sairmos pra calçada
novamente (ô, povinho de coragem!) e volvi à luta com aquela minha coragem
glacial e descolorida. E o Choque de novo calçando... e todo mundo se espremendo
dentro da igreja. E foi assim, a peleja, até terminar o julgamento.
No
31 de março próximo passado, tive a lembrança daquele dia. Não esqueço da
imagem do cachorro mordendo meu companheiro, da nossa carreira desesperada pelo
centro de Belém, do tomara-que-chova, das metralhadoras e dos meus passamentos.
Não sei por que lembrei. Acho que por causa desses pampeiros que têm castigado
a cidade.
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