sábado, 5 de março de 2016

crônica da semana - bandido doce

Cabrita, o bandido doce
Não foi nem uma, nem duas vezes que o encontrei muito doidão, chorando, largado no leito da calçada do Josino Viana. Era sempre assim quando estava na rua, livre. Entre uma ação e outra, enchia a cara. Ativada pela reação etílica, reinava no íntimo dele a mais dolorida e emocionada reflexão. Ficava jogado, escorado no muro da escola. Os moleques passando, mexendo com ele, tirando onda, avacalhando, fazendo rimas com o ‘ita’ de Cabrita. Ele nem seu souza. Fazia um resmungo vazio, tirava uma distância no olhar, vislumbrava uma lembrança, uma tristeza longe. Chorava. As pontas dos dedos, algumas cicatrizando; outras, ainda em carne viva, resultado dos corretivos, diziam, recebidos na última temporada no pátio da central. Eu era moleque, andava por ali todos os dias no caminho para a Aparecida. Tinha motivos para ter medo do Cabrita. Mas não. Passava por ele devagarzinho, imaginava o que ele estava sentindo. O que me ocorria era uma compaixão infantil, um altruísmo pueril. No meu pensamento, recriava a personalidade dele, reestruturava-lhe a índole. E isso me fazia crer que ele era um bandido doce.
Porque malino mesmo não era. Era um oportunista. Vagava pelos quintais na alta madrugada, espreitava galinheiros populosos, atinava para uma bicicleta largada no chagão, uma roupa esquecida quarando, analisava a porta das casas pra ver se não tinha um ferrolho empenado, uma tramela girada, trancas mal trancadas que deixavam as portas entreabertas; procurava por bandas de janelas pensas e separadas entre si. Aproveitava as chances e subtraía um bem menor, uma quinquilha para vender ali adiante e usar o dinheiro para financiar dias e dias de porre. Nem consumidor de droga ilícita era. Nunca se ouviu dizer que portasse uma arma. Uma faquinha de pão sequer. No máximo recorria a um pé de cabra para forçar uma ou outra proteção que lhe impedisse a ação. Quando descoberto, corria. Rompia as cercas, pulava muros, dispersava a cachorrada com pernadas no qual pega, varava numa rua estreita, cambava para os escurinhos e desaparecia nos becos.
Era chamado de Cabrita, não como cabrito, de vez que assim previne o gênero do meliante. O apelido veio exatamente do som que ele emitia nas sessões de choramingos. Um homenzarrão. Um teba d’um macho de mãos gigantescas, pés gretados e tenazes, gogó saliente, olhos vermelhos e graúdos. Mas quando chorava, entoava um berrinho fino, agudo, numa frequência e numa tonalidade que destoava categoricamente da sua envergadura. Não era gemido de bodão nem de cabritinho. Diziam os populares que mais parecia um lamento de cabrita. Pegou. Virou Cabrita, para mim, o bandido doce.

Certa vez, estava na antecâmara do sono, junto ao muro. Desviei caminho e cheguei pertinho dele. Andava sumido, tirando um tempo na prisão porque foi pego roubando uma bateria de cozinha completinha. Tinha reaparecido por aqueles dias. Nas mãos umas tiras de pano amarravam debilmente os dedos feridos. Era verdade, me certifiquei. Arrancavam as unhas dele na cadeia.

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