Cabrita, o bandido doce
Não
foi nem uma, nem duas vezes que o encontrei muito doidão, chorando, largado no
leito da calçada do Josino Viana. Era sempre assim quando estava na rua, livre.
Entre uma ação e outra, enchia a cara. Ativada pela reação etílica, reinava no íntimo
dele a mais dolorida e emocionada reflexão. Ficava jogado, escorado no muro da
escola. Os moleques passando, mexendo com ele, tirando onda, avacalhando,
fazendo rimas com o ‘ita’ de Cabrita. Ele nem seu souza. Fazia um resmungo
vazio, tirava uma distância no olhar, vislumbrava uma lembrança, uma tristeza
longe. Chorava. As pontas dos dedos, algumas cicatrizando; outras, ainda em
carne viva, resultado dos corretivos, diziam, recebidos na última temporada no
pátio da central. Eu era moleque, andava por ali todos os dias no caminho para
a Aparecida. Tinha motivos para ter medo do Cabrita. Mas não. Passava por ele
devagarzinho, imaginava o que ele estava sentindo. O que me ocorria era uma
compaixão infantil, um altruísmo pueril. No meu pensamento, recriava a
personalidade dele, reestruturava-lhe a índole. E isso me fazia crer que ele
era um bandido doce.
Porque
malino mesmo não era. Era um oportunista. Vagava pelos quintais na alta
madrugada, espreitava galinheiros populosos, atinava para uma bicicleta largada
no chagão, uma roupa esquecida quarando, analisava a porta das casas pra ver se
não tinha um ferrolho empenado, uma tramela girada, trancas mal trancadas que
deixavam as portas entreabertas; procurava por bandas de janelas pensas e
separadas entre si. Aproveitava as chances e subtraía um bem menor, uma
quinquilha para vender ali adiante e usar o dinheiro para financiar dias e dias
de porre. Nem consumidor de droga ilícita era. Nunca se ouviu dizer que
portasse uma arma. Uma faquinha de pão sequer. No máximo recorria a um pé de
cabra para forçar uma ou outra proteção que lhe impedisse a ação. Quando
descoberto, corria. Rompia as cercas, pulava muros, dispersava a cachorrada com
pernadas no qual pega, varava numa rua estreita, cambava para os escurinhos e desaparecia
nos becos.
Era
chamado de Cabrita, não como cabrito, de vez que assim previne o gênero do
meliante. O apelido veio exatamente do som que ele emitia nas sessões de
choramingos. Um homenzarrão. Um teba d’um macho de mãos gigantescas, pés
gretados e tenazes, gogó saliente, olhos vermelhos e graúdos. Mas quando
chorava, entoava um berrinho fino, agudo, numa frequência e numa tonalidade que
destoava categoricamente da sua envergadura. Não era gemido de bodão nem de cabritinho.
Diziam os populares que mais parecia um lamento de cabrita. Pegou. Virou Cabrita,
para mim, o bandido doce.
Certa
vez, estava na antecâmara do sono, junto ao muro. Desviei caminho e cheguei
pertinho dele. Andava sumido, tirando um tempo na prisão porque foi pego
roubando uma bateria de cozinha completinha. Tinha reaparecido por aqueles
dias. Nas mãos umas tiras de pano amarravam debilmente os dedos feridos. Era
verdade, me certifiquei. Arrancavam as unhas dele na cadeia.
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