segunda-feira, 21 de março de 2022

crõnica da semana - chagão

 Pode entrar pelo chagão

Vagávamos ansiosos pelas ruas margeadas com pedras de lioz, ali pelos adiantes do centro de Belém, eu e meu compadre José Miguel Alves. Contávamos os dias para o lançamento de um livro que publicaríamos em parceria. Distribuímos material de divulgação nos jornais que ainda mantinham suas redações no âmago do comércio e trançávamos, depois da missão cumprida, um papo cabeça sobre os conflitos da linguagem. Nessa época não sei em que eu me enfiava, mas era bestão que só vendo. Metido a saber da estética, da genética e das artes. Não tinha um isso que periquito roesse, mas me enchia de enxerimentos e me dava como um crítico do fraseado. Gabava-me de ser gramatiqueiro. Expressava sem pena, meu descontentamento ante construções do tipo “a gente fomos pro jogo” ou “traz água pra mim beber”. Taxava essas elaborações como um erro. Um desrespeito ao Paschoal Cegalla.

Meu compadre Miguel, à época concluindo a graduação no curso de Letras, com aquela paciência professoral, e já se anunciando nesse jeitinho persuasivo de mestre, que ele tão bem pratica hoje; em tempo, me libertou daqueles pensamentos malignos e me apresentou às maravilhosas traquinagens linguísticas. Fez-me perceber os fenômenos, as mais variadas arquiteturas que o enunciado assume e que, longe do juízo de estar certo ou errado, é pelo uso instaurado nos nossos dias, a revelação da língua viva. “Inculta e bela”.

E eis que semana passada escrevi aqui sobre uma farinha que estrala no dente. Poderia ser um enunciado estralado. Entretanto, o zelo residual, insensível, casmurro e imponderável, ou mesmo o medo de ser incompreendido, me fez marcar o termo. Que coisa. Que fraquejada. Preciso bancar a naturalidade dos dizeres sem os sinalizadores, sem tirar a bronca, sem as aspas para disfarçar.

Resolvi então me penitenciar hoje explorando esta entidade, este marco do cenário urbano que é o chagão. Traçado tão real e verdadeiro, quanto dissimulado, quando queremos dar um nome a ele.Temos vergonha de chamar o chagão de chagão.

É estrutura ainda bem presente no ordenamento de casas e vilinhas da cidade. Trata-se de um espaço, que pelo comum, separa casas e terrenos de proprietários diferentes, disposto lateralmente às habitações e que serve como acesso alternativo ao imóvel (e afetivo: quando a gente entra pelo chagão, já vara na cozinha da vizinha).

Há uns bons anos, meus colegas de rua, por antipatia ao termo, e não encontrando outra forma de apelidarem este segmento do terreno, por aproximação, resolveram chamá-lo de saguão. Penso que não cabe.

Eu aprecio é a versão libertária. Chagão mesmo. É quase imagem, feição. Arte explicável pela correlação. Se a gente entender este eixo longitudinal (que nos faz, da calçada, já chegar à cozinha para um cafezinho), ser uma grande fissura na pele ordenada da rua, podemos considerá-la como sendo um rasgo, uma chaga de dimensões mapeáveis. Um chagão. Protegido por um portãozinho de trançado débil, ladeado de estacas farpadas, com um cachorrinho que late em agudíssimo alarde quando a gente bate palmas lá da frente, pedindo a atenção d’o de casa.

Ainda me acossa o cartesianismo da gramática. O que torna é que se a gente critica um deslize aqui, acolá, é certo: escorregamos também adiante. É humano. Não temos de que nos envergonhar dos enunciados abonados pelo uso.

Se zanzar pela Pedreira, passa aqui e entra pelo chagão. Se não tiver um cafezinho, já que hoje, tudo está pela hora da morte, a gente entorna um capim santo.

 

 

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