O relógio que marca hora
patrasmente.
Aprender
a ver hora em relógio de ponteiro foi um dos maiores desafios da minha vida.
Uma luta pra mamãe inculcar aos meus tico e teco a lógica daquele raciocínio. E
era tão titânica a missão, que apesar de seu dulcíssimo ser, de sua infindável
paciência de mãe, e de sua inquebrantável generosidade, de quando em vez,
perdia a conta; “Esse menino é desorientado, só pode ser”. Mandava eu treinar e
voltava n’outro dia, tentando inculcar de novo.
Não
era fácil. Na hora cheia, até que ia. Ponteiro pequeno aqui, ali, acolá; ponteiro
grande, no doze. Essa eu acertava de prima e mamãe criava uma esperançazinha.
Quando era na hora quebrada é que a coisa desandava. Não acertava uma. A mais
drástica das combinações era o quinze pras três. Eu nunca dava uma forra. Ia
direto para as duas horas. Mamãe reinava em me dar uns transpescos nessa hora.
Não dava, mas mandava uns elogios daqueles que dá vontade da gente se enterrar.
Também, quem manda! Muita informação. Velocidade diferente dos ponteiros,
enquanto um fica numa lerdeza de passar de dois para o três, o outro vai com
mais de mil, ao encontro do doze. Era demais para mim.
E
até que o sofrimento não era tão avassalador. Lutávamos dentro da população dos
números inteiros. Quer ver quando passei uns dias na Espanha e vi que lá eles
contam no conjunto dos Racionais. Diz-se por lá: “Um quarto para as três”. Já
pensou? É de baratinar total. Se no tempo da mamãe eu tivesse que me valer das
frações próprias, das frações irredutíveis, das simplificações, tava era na
roça.
Fui
indo, fui vindo, recebendo um elogio aqui, inspirando um transpesco da mamãe ali.
E não é que aprendi a parada! Virei craque. Quando os primeiros Casios digitais
chegaram, não dei nem thum pr’eles. Continuei prestigiando os relógios de
ponteiros. Usufruindo do charme, da precisão, e até de uma presunção em lidar
com as horas no sistema sexagesimal. Firulando, até. Fazendo graça, usando a
peça no braço esquerdo, com o pino pra frente; no braço direito, com pino pra
trás. Trocando pulseira, trocando visor, trocando tudo. Fazendo a conta e tirando de letra aquela, outrora,
angustiante conversão que prega três ser quinze; seis ser trinta e o nove (o
famigerado racional um quarto), ser quarenta e cinco.
O
aprendizado da hora nos relógios de ponteiros, além de nos conectar ao tempo e
às urgências da vida, nos orienta e nos propõe um sentido universal, aquele que
mede a eficiência até na mexida do mingau: se não for no ‘sentido horário’,
empola.
O
que se dá é que, anos a fio dominando o caminho horário dos ponteiros, dias
desses, tive que reiniciar no aprendizado. É que um relógio que ganhei do poeta
Francisco Mendes, depois de uma semana operando no sentido e na precisão, do
nada, começou a girar ao contrário. Cismou de contar o tempo para trás. Tipo
relógio do Benjamin Button. Não desisti. Não se despreza presente dado de
coração. Virei pino, reorientei a sintaxe de números e marcadores, refiz
sentido de leitura. E ando, pra cima e pra baixo, charlando com o patrasmente
do meu relógio de ponteiros.
Sodré,
ResponderExcluirSó você para falar tão suavemente, elegantemente e engraçadamente de relógio de ponteiro. Só uma mente genial, para conseguir extrair tantas expressões, falando de ponteiro de relógio. Parabéns, amigo por nos presentear com mais essa crônica.