sábado, 25 de fevereiro de 2017

crônica da semana - maré estofa

A maré estofa e o que a gente perde por lá
Eu perdi na maré uma mina de coisas, um trancelim, algum fim, títulos e prosas não escritas. Como alento, aprendi na Universidade a achar artes e peças, a perder de novo. Aprendi.
Foi numa disciplina que me deu um trabalhinho. Na primeira tentativa, passei (com um errezinho, mas passei). Fiquei uns dois semestres passado. Até que fui informado que não poderia me matricular regularmente, porque o meu professor havia me despassado daquela mesma disciplina que eu  havia passado com R, alegando que eu não participara de uma viagem de campo. Já pensou o transtorno? Escapei de repetir a disciplina com um nome consagrado na pesquisa do petróleo. O horário não combinava. Outra vez, nem conheci o professor. Desisti no caminho da Universidade. Sei lá, me deu um banzo.  Fui me atrasando no curso. Voltei com o professor Werner Truckenbrodt, uma lenda, no curso de Geologia. Passei com B, sem precisar fazer viagem alguma. Depois do Werner, me animei. Tratei o curso com mais zelo. Sabia que não iria concluir, mas decidi que o que eu aprendesse dali pra frente, levaria comigo para a vida. Aprendi sobre a maré estofa e sobre este mundo silencioso que nos tira sonhos e coisas.
A maré é uma corrente. Corrente é algo que corre. Werner explicava a dinâmica das marés pra gente ali na sala e a minha cabeça fervilhava, pensando na baia do Guajará. É o que acontece todos os dias aqui na frente de Belém. A água correndo prum lado, tomando as margens, afogando furos, elevando até lá em cima o trapiche feito com o tronco do Miritizeiro. Depois correndo pro outro lado, desbarrancando dobras, trazendo as rasas de açaí, adiantando a viagem do Fé em Deus IV. A maré estofa é o instante certo entre a maré enchente e a vazante. A água vai subindo, até cobrir a pedra do peixe, no Veropa. De repente para de subir e começa a vazar. Entre encher e vazar, há um tempo de corrente parada.Tudo parado (não sei exatamente este tempo. Acho que faltei a esta aula do Werner). Mas é um tempo fundamental para acontecerem espetáculos naturais que impressionam e nos valem.
Se tudo para, aquela correria de água enchendo, para. Nesse momento, o que quer que esteja sendo arrastado pela energia da corrente, se aquieta, procura um canto pra se acomodar. O que é mais pesado vai procurar o fundo do rio, aquele que é mais levinho vai flutuar até descansar num barranquinho e formar um lamaçal fértil.
Hoje, depois de ter perdido o meu diploma universitário e de, ao mesmo tempo, ter achado sentido em outras artes, fico imaginando uma baía do Guajará silenciosa e profunda. Um mundo de água sem movimento, apenas animado por uma laminha flutuando em busca de sossego. Penso que é ali, no seio da maré estofa, que está um trancelim, algum fim, o título e a idéia de uma crônica que iria escrever hoje. Eis que quando abro o arquivo, dou com o título: “Três em um” e o resto da página em branco. Ali, num tempo de letargia, que eu nem sei quanto dura, e que de repente, desperta para a vazante, está uma história da qual, não lembro absolutamente nada.


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