domingo, 13 de outubro de 2019

crônica da semana - trovinha círio


Trovinha
Só faltaram catorze anos para eu me formar de turismólogo. Mas se alguma coisa apitasse nesta área, não abonaria de jeito e maneira esta presepada de a gente ser o exótico, o inesperado. É como se uma cultura pudesse ser normativa, estável. E todas as outras fossem pontos fora da curva. Um ponto, diga-se, que possa ser ajustado. Reordenado no zero da função...
Aconteceu há alguns anos. Eu era dirigente sindical. Em outubro vivíamos o pico das tensões para a negociação de nosso Acordo Coletivo.
O grupo empresarial com o qual nos batíamos, lançou mão de uma estratégia de desmobilização. No calor do puxa-encolhe e das intransigências negociais, operou a concessão imediata de um agrado para o Círio. Ofertou um peru para cada peão da categoria. No meio daquela muvuca de reuniões, de assembléias e deliberações, fomos surpreendidos com este bônus.
Olha que fiquei piriricas da vida. Não pela trairagem, que isso é tática dos contendores. Jogam com o que têm. E sim, com a total falta de respeito com nossa cultura. É sabido, que temperado bem temperadinho no jambu, quem é servido no domingo da romaria como prato típico do Círio é o pato. O delicioso pato no tucupi. E não o peru.
Não sei de onde tiraram essa marmota. Mais que depressa distribuíram o peru, armaram a cena, classificaram aquela oferenda como um passo determinante para que a categoria aceitasse os termos defendidos por eles na negociação. Eu mesmo peguei a parte que me coube naquela latomia. Um teba congelado que ia além de quatro quilos e que ainda vinha com um pininho que anunciava estar o assado no ponto.
Magoou. O peru fez efeito contrário. Articulou o desarticulado e balançou o ânimo dos trabalhadores. Obstinados que éramos, não largamos da luta. Nada estava terminado. Tiramos distância e nos pegamos com a Santinha. Precisávamos de força naquela hora. Urgia revidar àquele ataque desleal a grugulejar em nosso tino.
Era redator dos informativos do sindicato. Na sequência, busquei inspiração na mãe dadivosa e fiz um manifesto para os trabalhadores, realçando o sabor das intenções que recheavam aquele peru; e traduzindo aquela ação como uma forma de pagarmos o pato pelos evidentes riscos de perdas salariais. Ano difícil. Marcado pela reestruturação produtiva e modificações drásticas nas relações capital x trabalho. Carecíamos de muitas bênçãos.
Adiante, no mesmo informativo, teci um arrazoado antropológico em defesa das nossas raízes culturais, que no frigir dos ovos, queria dizer à bancada da patronal, que não, não era peru, o tradicional prato do Círio. Era pato. Pato no tucupi.
Claro ficou que os representantes dos empresários, sendo de fora, não atinaram para o desastre que provocaram. Entendemos aquilo como uma interferência colonialista nos nossos costumes. Um vilipêndio a uma regra culinária, quase sagrada, que vem se repetindo há gerações. Nossa fé moveu a montanha.
Endurecemos a parada e fomos bater na mediação, algumas semanas depois. Lembro que em um dos trechos da nossa tese, citávamos a gafe antropológica. O mediador aceitou o Acordo Coletivo com os termos a nosso favor, não sei se sensibilizado pela defesa que fizemos da nossa mais famosa iguaria, se iluminado por alguma luz divina ou se embasado nas jurisprudências. Assinado o acordo a vida dos operários voltou aos termos.
Ah, o peru. Congelado estava, congelado ficou. Sendo que, do Natal não passou.

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