sábado, 23 de novembro de 2019

crônica da semana - dois pierre


Dois Pierre (A Terra não é plana)
Eu sou do tempo do Francês nas escolas públicas. Tenho dúvida se foi na quinta ou na sexta série que estudamos a língua de Voltaire. Certo estou que foi por aqueles idos cheios de ideais (sufocados) de liberdade, igualdade e fraternidade, dos anos 70. O livro de apoio era o emblemático “Le Français Par L’Image”, de Irma Aragonês Forjaz, e só pelo nome da autora potencializava o conteúdo em doirada élégance.
O formato do livro era com base nas ilustrações. Pequenas historinhas cotidianas eram desenhadas em quadros coloridos e traziam a legenda explicando a ação. Um enredo era montado com elementos comuns aos nossos dias e acabávamos decorando a sequência da lição. Na aula seguinte, o professor usava uma tela de papel que cobria a legenda, ficando à mostra somente a imagem. O exercício consistia em reproduzirmos em francês, as cenas, oralmente ou escrevendo numa folha de papel almaço. Sei umas lições até hoje. “Pierre, où vas-tu maitenant?”... “Je vais rentre à la maison”...“où est ta maison?”... “ Regarde em bas, la maison jaune”.
Tirando aí a distância de mais de quarenta anos, acho que ainda fecharia um cinquinho numa prova com telinha encobrindo as legendas.
Convivemos juntos um período, eu e o Pierre das lições, pelejando para um não machucar o outro, atentos aos esforços do professor para que se articulasse as palavras fazendo biquinho com os beiços em frases universais, poderosas. “Amour toujours amour”. Oui, oui, monsier.
Depois, das séries seguintes, e me parece que para sempre, dos curriculos escolares, o Francês desapareceu. Quando dei fé, já eram dois Pierre. Os encontrei, anos mais tarde, não como personagens de uma lição por imagem, mas explicando formas e resultantes matemáticas do círculo.
Dois Pierre compõem uma dedução matemática, das mais elegantes. No frigir dos ovos, a gente até se familiariza com a fórmula, nem que seja na base do decoreba. Trata-se do cálculo do perímetro de um círculo.
É um enredo geométrico usado para tanta coisa, mas para tanta coisa, que passaria dias listando os efeitos que uma continha envolvendo o círculo faz na vida dos seres animados, dos nem tanto e na natureza das coisas, do tempo e do espaço. E por falar em imensidões, o número essencial para o cálculo da área do círculo, é o número Pi. Surgiu da iluminação intelectual dos gregos, e ao passar dos anos foi ganhando fama como uma constante misteriosa. Muitos ainda tentam achar o seu valor completo. O Pi já chegou a ser o número três seguido por 31.811 casas decimais. Mas não é só isso. Hoje, cientistas usando computadores monstruosos ainda perseguem a totalidade de casas decimais do Pi. (Dizque já bateu em cinco bilhões de casas decimais. Já pensou?)
Voltemos ao francês. Encontrei Pierre duplicado, muito tempo depois, nesses calculinhos. A fórmula para achar o comprimento de uma circunferência é dois Pi r, Uma continha matemática que permite até fazer biquinho no beiço lembrando as aulas de Francês e os desencantos dos anos de chumbo. Oui, oui. “Pierre, où vas-tu maitenant?”
Se alguém acredita que a Terra é plana, não vai a lugar nenhum. Pierre atua em todos os cálculos de navegação. Localiza e orienta aviões, navios, e pra onde aponta o nariz. Define curvaturas. Aliás, não vai cavar nem um poço Amazonas no fundo de casa.

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