sábado, 5 de novembro de 2022

crônica da semana - a dança da rua

 A dança da rua

Dante Gatô criou, elaborou o tempo, a marcação, os movimentos poucos e plenos. Seleciona os brincantes, ensaia por noites e noites, e quando dá o momento, faz uma apresentação no passeio central da Pedro Miranda.

Olhando de cima a gente identifica uma ordem. Silenciosa em azul, rosa, vermelho; percebemos traçados na calçada, riscados no espaço, debaixo do céu claro. A dança é de dia e bebe o ritmo do sol.

Dante Gatô criou

Veio da França, logo depois da Copa de 1998. Desembarcou em Belém, evaporou o passado, de tanto calor; tomou açaí, comeu da farinha baguda, e se aninhou na Pedreira. Tinha uma sonoridade e uma cadência na cabeça que talvez guardasse uma origem nas celebrações celtas, mitificadas, misteriosas e proibidas. Recebeu a herança de aldeões bárbaros das Ardenas, de mulheres poderosas das florestas e dos druidas de barbas gris e longas. Nos trouxe a idealização de um proscrito caldeirão celta, temperado com ingredientes subversivos, ervas revolucionárias e vapores revoltosos da fervura.

O mais extraordinário é que não tem música cantada ou tocada na apresentação. Apenas uma marcação extraída do próprio movimento dos dançarinos. Um tum tum cadenciado que habita o íntimo de cada um. Altivo e elegante. Cada qual com seu par. Um passo à frente, trocam sorrisos e gentilezas, fazem a ginga e se tocam. Girou! Aos seus lugares. Tum tum.

Lá de cima a harmonização do universo em chapéus com fitas rosas e boinas vermelhas com raminhos na borda. Alvos e bem cortados paletós diante de saias rodadas. Evolução simples, educada, num ritmo mágico, pleno, de singular candura. Instigante. Sensual. Bem tramado no espírito, no mais escondido da alma. Girooou!

Dante Gatô criou.

Não conheci Dante Gatô de palmo em cima. Ele nem é deste plano físico. Ele e a história dele existem apenas no sonho. Acordei num dia desses graves de outubro com este nome, a dança se realizando, e essa região da Pedreira, entre a Escola Salesiana e a Dr. Freitas fazendo o cenário. Como era um sonho, vi tudo de cima. Ao acordar, havia a estrutura de um poema com o andamento inspirado na dança de rua. Logo pensei no meu compadre Edir Gaya. Imaginei como ele ficaria feliz com uma forma diferente, uma construção poética além do que se dá no meu comum. Os versos se movendo. E se animaria: “ulha, manda pra mim”. Na mesma pegada, pensei numa prosa que simbolizasse a leveza, o fluir da alma, a liberdade conquistada. Um espetáculo visto de cima, como se nos estivéssemos livrado de um peso de quatro, cinco anos de chumbo quente sobre nossos sonhos e...flutuássemos.

A dança de rua se dá com os personagens dispostos nas margens do canteiro da Pedro Miranda, local, no dia-a-dia, usado pra tudo em quanto que não signifique arte. Formam duas fileiras que assim, de cima, assemelham-se a gigantes sucuris coloridas. Aos serpenteios, as fileiras se tocam ponto a ponto, em contatos de puro prazer e amor.

Cada qual com seu par. Uma passo à frente, trocam sorrisos e gentilezas, fazem a ginga e se tocam. Girou! Aos seus lugares. Tum Tum no coração. Leveza no espírito e generosa entrega.

É extraordinário este fato da gente acordar e ter uma história, um fato, um cenário, um personagem, surgidos do vazio noturno. Rapidola registrei na minha caderneta. Sim, tenho uma caderneta! Organizei as sequências, e me encantei com tanta arte extraída do consciente adormecido.

Ansioso para conhecer a dança da rua de perto

E para conhecer Dante Gatô

Que a criou, elaborou o tempo, a marcação, os movimentos poucos e plenos.

Fez a ginga e... Girooou!

 

 

Nenhum comentário:

Postar um comentário