domingo, 16 de outubro de 2022

crônica da semana - análise provecta crustácea

 Análise provecta crustácea

O camarão é um animal invertebrado do grupo dos crustáceos. Tem o corpo alongado, coberto por uma casca transparente dura, mas flexível. É aparentado do santospés, da abelha e da barata entre tantos e diversos exemplos. É tido na natureza como um animal decompositor, aquele que recicla matéria orgânica gerada por outras e variadas espécies. Dizque é por isso que causa aqueles emboloamentos na’zurelhas e alergias de fechar a glote. Mas tirando os contras é uma iguaria de excelência, de potenciais culinários altíssimos. Chega a ser chique. Bom pra dedéu tratado, cozinhado de tudo quanto é maneira ou, que seja, cru, quando subtraído numa beliscada rápida do colfo de um vendedor distraído, lá do veropa. Dou maior valor.

Eu tenho muito respeito pelo camarão. De modos a não achar que deva ser servido de qualquer jeito. Pelo status, entendo que sempre deve compor um prato engalanado. Pode até ser ao alho e óleo, só; no bafo, mas essas são exceções práticas ou culturais, repletas de perdões. Na regra e no certo, espero sempre um arranjo, uma mimetização, que seja, na completude do caruru, um estilo este de atraente, um modo aquele de simpático, assim é minha receita para a degustação do camarão.

E é tanto recato, que desde que tempo, assumo uma postura analítica quando vou comer camarão. Seja ele do tamanho que for. Dos taludos, dos gitos, eu sempre divido aquela estrutura alongada em pedacinhos. Sério. Não passo pra dentro um camarão inteiro nem a pau. Acho uma afronta. Uma descabida soberbia.

Taí, olha, o mundo pode estar se derretendo em críticas. Todo mundo cortando a gíria pra cima de mim, dizendo que tô rendendo o prato, que isso, aquilo, mas na hora de apreciar a moqueca, o estrogonofe; e mais ainda quando encontro aquele heróico espécime no vatapá, arrumo uma faca, o garfo, separo o zinho e o vou decompondo em pedacinhos. É pra render mesmo.

Esta minha conduta analítica é certo, tem a origem lá atrás na infância pedreirense, quando a gente comia camarão uma vez na vida e pra dar mais uma prova, só em eras outras imensuráveis.

Até hoje faço do mesmo jeitinho.

Para os nossos padrões de consumo e ainda mais nestes tempos cascudos que vivemos, o camarão é caro pacas. Pelo comum, entra nos pratos mais humildes, só pra dar o gosto. Mamãe mesmo alertava. “Vai no Sandra, compra as coisinhas da lista e depois pede pro rapaz pesar uma mãozinha de camarão. Uma pequena porção, só pra dar o gosto na gororoba que vou fazer pro almoço de domingo”. E assim se dava. E mesmo o pouquinho que nos cabia, eu picava até a enésima parte.

Há um tempo, eu impinimei que deveria conhecer a origem, o sentido das palavras. E fiquei num pé e n’outro com a palavra ‘análise’. Consultei dicionários, fui até a Grécia, desci para as sintaxes indo-européias, me acudi ao vulgo, emendei nas estilísticas. De tantas sinalizações, achei atraente a definição “dispor em partes”. Relacionei este sentido com a ação que Seu Excremento, que era vizinho da Mauriti, tomava toda vez que a nossa bola caía no quintal dele: inevitavelmente fazia uma análise da bola e a nos devolvia bandada.

Com o tempo, dei de bandar também, outros sabores, diversos prazeres, inevitáveis frustrações, dolorosas quedas, ácidas relações, tímidas e contidas euforias, puríssimas tristezas, fluidas alegrias; a orelha emboloada, a alergia... o comichão na glote por essa tragédia que vivemos no Brasil. Hoje, atomizo muita coisa. Não só o camarão. Além da porção bem pesada pelo rapaz do Sandra, me imponho analisar coisas além, de forma a forjar, ao menos, um gostinho à esta dura arte de viver.

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