Dona Silva
Era
o que se costuma dizer hoje, uma guerreira. Criou sozinha três filhos homens,
sustentava a casa com o salário de merendeira de uma escola do estado e era
nossa vizinha parede-meia. Não é o caso explorar a história e descobrir por que
Dona Silva ficou sozinha, embora seja necessário a gente identificar e discutir
estes casos. Não é fácil. Sumiço, desaparecimento, o abandono do lar pelo
marido, pelo pai é chaga que deixa marcas profundas na família. É um trauma e
uma falta na organização familiar sentida a cada dia, principalmente, na luta
incessante pela sobrevivência. E, infelizmente é tão comum esta prática cruel,
este descompromisso, a ausência de qualquer responsabilidade, se não afetiva,
pelo menos jurídica, social, de apoio, de cuidado com quem um dia o desertor
teve alguma relação. Eu mesmo, se tirar das minhas relações comuns, devo contar
que em torno de 80% das famílias que conheço, são assumidas apenas pela mãe.
O
marido de Dona Silva foi embora e ela ficou com os três filhos. Não tinha mais
ninguém. Quer dizer, éramos vizinhos. Dividíamos a mesma parede de uma casa de
madeira pequenina de três cômodos, as duas famílias sob o comando de uma
mulher: não estávamos sozinhos diante do destino.
Tínhamos uns aos outros.
Tão
atenta e generosa era que, não dava uma vez que recebesse o garantido ordenado
do mês, mesmo que miúdo, fosse ao Supermercado Sandra, fizesse uma feira bem
sortida e não trouxesse uma coisinha pra gente. Não providenciasse aquele quilo e meio de pá só
com o osso da peça, inventasse um assado de panela e não reservasse a nós, uma
prova. Ou mesmo preparasse um pratinho qualquer, uma gororoba, uma coisa, outra
e não partilhasse conosco em momentos de um simbolismo comovente. Do nosso
lado, nem o certo miúdo era garantido. Não tínhamos salário. Todo mundo se
virava lá em casa, mas era um numerário flutuante, atrelado ao balançar das
ondas de vendas ocasionais, cobranças, empréstimos, doações. Quando a gente
tinha, mamãe tornava com um agrado para Dona Silva e os meninos. E assim, a
vida era vivida. Nos segredos guardados entre as brechas da parede-meia, nos
aperreios e consolos ritmados, em sinceras intenções e nas autênticas vontades
de fazer o bem.
Dona
Silva é bem dizer, a responsável por eu estar aqui, catando milho no teclado
deste computador e elaborando uma narrativa, hoje, prosaica, sobre as suas
condutas tão solidárias.
Certa
vez, numa conversa com mamãe, expondo uma experiência vivida na própria
família, apresentou uma possibilidade de futuro para mim. Orientou mamãe que me
estimulasse a fazer a prova de admissão para a Escola Técnica. Dois dos filhos
dela ainda beiravam concluir o curso e já estavam com empregos garantidos.
Para
mim foi um sacolejo. A ideia de futuro além da oitava séria, em mim não existia
nem no rés dos meus pensamentos. Tinha a luta diária, a “obrigação de acordar
cedo para ir à escola”, um compromisso de não mais repetir de ano, mas daí,
juntar estas coisas e formular um futuro, isso não existia não.
Acontece
que agarrei e fui fazer a prova. Foi na arquibancada do ginásio da Escola de
Educação Física, mina de gente e a papelada com as questões apoiada sobre os
joelhos. Daquele dia e mais três anos e meio de uma dedicação aqui, ali abalada
pelo peso dos desafios, ganhei meu diploma e menos de dois meses depois de
formado, consegui meu primeiro emprego em Rondônia. Bingo, Dona Silva!
Com
as conquistas proporcionadas pelas carreiras, os meninos de Dona Silva mudaram
de vida, e ela também. Um deles foi para o Rio. Eu me passava quando Dona Silva
rejuvenescida, toda no seu rouge, nos informava que iria visitar o filho no Rio
de Janeiro.
Passados
tantos anos, estou eu dando o mesmo papo. Mais com pouco passo um pó na cara,
arrumo as malas e vou visitar meu filhinho, a nora, e a netinha no Rio.
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