sábado, 23 de março de 2024

crônica da semana - Dona Silva

 Dona Silva

Era o que se costuma dizer hoje, uma guerreira. Criou sozinha três filhos homens, sustentava a casa com o salário de merendeira de uma escola do estado e era nossa vizinha parede-meia. Não é o caso explorar a história e descobrir por que Dona Silva ficou sozinha, embora seja necessário a gente identificar e discutir estes casos. Não é fácil. Sumiço, desaparecimento, o abandono do lar pelo marido, pelo pai é chaga que deixa marcas profundas na família. É um trauma e uma falta na organização familiar sentida a cada dia, principalmente, na luta incessante pela sobrevivência. E, infelizmente é tão comum esta prática cruel, este descompromisso, a ausência de qualquer responsabilidade, se não afetiva, pelo menos jurídica, social, de apoio, de cuidado com quem um dia o desertor teve alguma relação. Eu mesmo, se tirar das minhas relações comuns, devo contar que em torno de 80% das famílias que conheço, são assumidas apenas pela mãe.

O marido de Dona Silva foi embora e ela ficou com os três filhos. Não tinha mais ninguém. Quer dizer, éramos vizinhos. Dividíamos a mesma parede de uma casa de madeira pequenina de três cômodos, as duas famílias sob o comando de uma mulher: não estávamos sozinhos diante do destino. Tínhamos uns aos outros.

Tão atenta e generosa era que, não dava uma vez que recebesse o garantido ordenado do mês, mesmo que miúdo, fosse ao Supermercado Sandra, fizesse uma feira bem sortida e não trouxesse uma coisinha pra gente. Não providenciasse aquele quilo e meio de pá só com o osso da peça, inventasse um assado de panela e não reservasse a nós, uma prova. Ou mesmo preparasse um pratinho qualquer, uma gororoba, uma coisa, outra e não partilhasse conosco em momentos de um simbolismo comovente. Do nosso lado, nem o certo miúdo era garantido. Não tínhamos salário. Todo mundo se virava lá em casa, mas era um numerário flutuante, atrelado ao balançar das ondas de vendas ocasionais, cobranças, empréstimos, doações. Quando a gente tinha, mamãe tornava com um agrado para Dona Silva e os meninos. E assim, a vida era vivida. Nos segredos guardados entre as brechas da parede-meia, nos aperreios e consolos ritmados, em sinceras intenções e nas autênticas vontades de fazer o bem.

Dona Silva é bem dizer, a responsável por eu estar aqui, catando milho no teclado deste computador e elaborando uma narrativa, hoje, prosaica, sobre as suas condutas tão solidárias.

Certa vez, numa conversa com mamãe, expondo uma experiência vivida na própria família, apresentou uma possibilidade de futuro para mim. Orientou mamãe que me estimulasse a fazer a prova de admissão para a Escola Técnica. Dois dos filhos dela ainda beiravam concluir o curso e já estavam com empregos garantidos.

Para mim foi um sacolejo. A ideia de futuro além da oitava séria, em mim não existia nem no rés dos meus pensamentos. Tinha a luta diária, a “obrigação de acordar cedo para ir à escola”, um compromisso de não mais repetir de ano, mas daí, juntar estas coisas e formular um futuro, isso não existia não.

Acontece que agarrei e fui fazer a prova. Foi na arquibancada do ginásio da Escola de Educação Física, mina de gente e a papelada com as questões apoiada sobre os joelhos. Daquele dia e mais três anos e meio de uma dedicação aqui, ali abalada pelo peso dos desafios, ganhei meu diploma e menos de dois meses depois de formado, consegui meu primeiro emprego em Rondônia. Bingo, Dona Silva!

Com as conquistas proporcionadas pelas carreiras, os meninos de Dona Silva mudaram de vida, e ela também. Um deles foi para o Rio. Eu me passava quando Dona Silva rejuvenescida, toda no seu rouge, nos informava que iria visitar o filho no Rio de Janeiro.

Passados tantos anos, estou eu dando o mesmo papo. Mais com pouco passo um pó na cara, arrumo as malas e vou visitar meu filhinho, a nora, e a netinha no Rio.

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