sábado, 2 de março de 2024

crônica da semana - Saqueiro

 Saqueiro! Saqueiro!

A principal atividade que realizavam era a de saqueiro. O produto era apregoado em cada canto. Nas feiras do Ver-o-Peso, da Pedreira, Jurunas, da Bandeira Branca. Vendiam um bem utilitário, não durável e advindo da reciclagem. O processo de elaboração se dava a partir do descarte dos sacos de cimento. Era um papel duro, vincado, grosso. A primeira fase contava com a escolha da face isenta de contaminação. Juntados, os fardos eram transportados, moldados e colados em tamanho de uma compra modesta na feira. Antes de ganhar a rua, ainda havia uma escala de qualidade. Saco simples, forrado em folhas duplas ou completado com saco plástico por fora, este, o saco do peixe. Dali eram distribuídos para os garotos. Os meninos arrumavam um jeitinho de se compor com a maior quantidade possível do produto. O método mais tradicional era uma peça de madeira linheira ou um cabo de vassoura de não mais que 50 centímetros atado a uma alça de barbante grosso nas duas extremidades, e que, lançada sobre o ombro, qual uma bolsa tira-colo, formava um conjunto equilibrado de modo a receber sobre a peça de madeira, os sacos dobrados uns sobre os outros em acamamento o certo que o peso fosse suportável. Abastecidos, ganhavam o mundo atrás da venda para ajudar ou mesmo para sustentar, como fonte única de renda, a família.

Mas a batalha diária não se limitava à venda dos sacos na feira. Havia, por certo, a concorrência, e a meninada corria atrás do di cumê de outras formas. Vendas de doces e salgados em tabuleiros atados também ao pescoço; bombons, cigarros, fósforos e outras precisões em bancas de esquina. Muitos recorriam aos semáforos e simplesmente pediam uma ajuda ou se davam a pequenos furtos. Para suportar as dores dos dias, não raro, quedavam-se ao alívio das colas de sapateiro.

Quando conheci mais de perto o trabalho da República do Pequeno Vendedor era a este universo que os educadores se dedicavam. Se entregavam com método, solidariedade e cuidado.

A República era uma organização social criada, liderada, orientada pelo Padre Bruno Sechi e suportada por uma legião de jovens incansáveis e inspirados. Muitos desses jovens eram daqui das bandas da Pedreira, Sacramenta. Iniciaram na missão através das campanhas de arrecadação de objetos usados, encaminhadas pelo Movimento de Emaús. A Grande Coleta, que se realizava com enorme repercussão a cada ano, era o suporte para as ações da República. Gerava recurso e também trazia voluntários de outros bairros para adensar o grupo de educadores e equipes de apoio.

As violências, as carências as quais os meninos e meninas estavam vulneráveis, eram identificadas no trabalho de rua, pelos educadores e resultavam em ações, medidas legais de proteção, proposições de amparo social e também nas campanhas de conscientização da comunidade, na expectativa que se tirasse das crianças os fardos, os pesos.

Um lugar onde aprender outros ofícios, senão aqueles da rua; ambiente seguro para matar a fome e se restabelecer dos conflitos diários foram conquistados. Tive experiências inesquecíveis na linha de frente. Acompanhei como se dava a acolhida dos meninos no restaurante do colégio do Carmo, no espaço comunitário da Padre Eutíquio e em pontos dispersos pelas ruas estreitas do cento de Belém.

O ECA e algumas políticas atuais surgiram com a contribuição do trabalho do Padre Bruno e equipe, com quem tive a honra de partilhar grandes momentos em favor dos jovens e crianças batalhadoras.

Este ano, o carnavalesco Eduardo Wagner Nunes, com a icoaraciense Boêmios da Vila Famosa leva para a avenida um enredo que homenageia e conta a trajetória de Padre Bruno, do Movimento de Emaús e das obras ligadas à defesa dos meninos e meninas de rua. É a folia esclarecendo, rememorando, alimentando o desejo de uma sociedade que transforme.

 

 

 

 

 

Um comentário:

  1. Perfeitas lembranças, cheguei participar, acho que de 3 campampanhas de Emaús.

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