sábado, 16 de março de 2024

crônica da semana - Pavãozinho do Pará

 Pavãozinho do Pará

Estou lendo agora uma edição bem bacana de “Aruanda” e “Banho de cheiro” de Eneida. Uma publicação bem bolada com as obras da escritora paraense marcadas por duas capas e as versões se encontrando de ponta-cabeça, de formas que, se iniciamos a leitura por “Aruanda”, ao terminar de ler a última crônica nos damos com os textos de “Banho de cheiro” do fim para o começo, e de cabeça pra baixo. Aí a gente vai e desvira o livro. Firme!

Eneida, que é minha vizinha nominando praça aqui na Pedreira, indo em cima e vindo em baixo no talento e no estilo, dá um banho de cheiro, de jeitos, modos e lembranças em narrativas que ora comovem, ora nos fazem refletir e em muitos casos nos põem lado a lado nas experiências. É o caso do Pavãozinho do Pará.

O pavão, aquele engalanado, posudo e exuberante, pra mim é como diz o samba: não sei, nunca vi, só ouço falar. Conheço só de fotos da National Geographic. Agora este um do Pará, já estivemos nós dois, de palmo em cima.

A grande cronista paraense, em algumas passagens das obras, faz citações, com temperos nostálgicos, do pavão e até trata as cenas como se comum fosse topar com um exemplar da ave ainda nos limites urbanos de Belém dos anos 20 e 30 do século passado.

Por aqui pela barra não vi não, mas em Rondônia, naquele início dos anos 80, no meio do caminho em mata virgem e fechada, tive a sorte de ter como companhia um pavãozinho. Com o direito a exibição do resplendor, bem modesto, com relação ao outro tipo, entretanto contendo em si, um arranjo de cores belo, suave. Sem aquela imponência vertical, comum ao mais famoso exemplar; mas de outra forma, com uma doçura, e com assumida humildade, a cauda se abria expressada em uma modéstia horizontal e encantadora, à minha vista. Naquele dia não sabia que tipo de ave era aquela, mas na óbvia dedução, imaginei ser um pavão. Ali, do segundo grupo de paletas. Mas, de certo, um pavão.

Este caminho era minha prova diária de coragem. Sem exagero, era uma brenha. Um ermo estirado e imprevisível. Andava por ali duas vezes ao dia. Pela manhã, quando me deslocava da vila em que morava para meu acampamento de pesquisa e, na volta à tarde, já com o canto da Guariba ao longe e o fiu fiu do Cricrió celebrando a brisazinha mais aquela de amena, no final do dia.

Era uma opção minha fazer esta caminhada que durava em torno de uma hora pela mata densa, em passadas de bom ritmo. Um varadouro que arriscava ensejar toda a sorte de encontros. Desde aqueles miúdos com as audaciosas formigas saca-saia até os empoderados, com as temidas onças caçadoras. Escapei de todos os indesejados. E, num dia bom, fui agraciado com a bem plumada presença do pavãozinho.

No tempo que fazia aquela caminhada, era verdinho em Rondônia. Passei meus primeiros meses numa vila isolada chamada Bom Futuro e de lá, me irradiava para as frentes de pesquisa. Meus dias eram roteirizados em saudades de Belém (como nos conta nas crônicas, Eneida, os eram, os dela). Vivi a minha solidão naquele caminho cheio de possibilidades e não tinha espaço emocional para ter medo. Tinha medo era da solidão, tão longe de Belém. Acudia-me às cartas que, quando menos demoravam, passavam 15 dias para me alcançar. E aos três dias por mês que me eram proporcionados de folga em Porto Velho. Boa parte deles, eu passava dentro das cabines de telefone, pagando uma grana preta na chave para as ligações interurbanas, perturbando o televizinho e pedindo pra chamar a mamãe lá do outro lado da rua.

E foi naquele caminho que encontrei o Pavãozinho do Pará abrindo a penugem e se revelando em beleza para mim. Nunca mais vi outro, nem ouvi falar. A não ser agora quando leio Eneida nesta edição muita das suas pai d’égua com suas páginas de cabeça pra baixo revirando lembranças.

Um comentário: