sábado, 9 de março de 2024

crônica da semana - casa de táuba

 Casa de táuba

A gente pensa que não, que não acha mais por esta Pedreira de Deus, casa de tábua. Mas tem sim. E aqui, no caso que nos cabe, tinha. A casinha que abrigou gerações, agasalhou o desagasalhado, acolheu aquela ruma de gente nos tantos tempos que se sustentou na dignidade e vontade, no último sábado, foi demolida. Uma cerimônia braçal, movida a sentimento de equipe, levou ao chão a casinha da vó, na Pirajá. Não há fantasia nenhuma, simbologia que seja, quando afirmo que, cada tábua desapregada e lançada ao chão, levava consigo uma história imensa de luta pela sobrevivência. Argelzinho, meu filho, sensível à densidade do fato, entre lágrimas, nos representou os sentimentos em texto comovente. Reproduzo aqui algumas partes também como reverência a uma casa que era um coração. Um coração onde todos nós, durante algum tempo, nos aninhamos seguros.

Isso me fez pensar que quando meu bisavô, Seu Cruz, e a minha bisavó, Dona Sassá, chegaram nesse terreno alagado, na baixada da Pedreira, construíram um barracão de pau em cima da água e colocaram os filhos (as) e netos (as) dentro, a gente tinha tudo pra ficar ali pra sempre. Poderíamos nascer e morrer todos nós dentro da lama. A pobreza que a minha família vivia ali parecia que era sem fim. Eu nem consigo, na real, imaginar o que as pessoas que amo passavam ali. Sabemos por alto, quando mamãe, minhas tias e tios contam dos traumas herdados.

Basicamente, dependiam dos esforços da minha avó, dos salesianos, do resto da família Nunes, vizinhos e agregados para se alimentarem e terem o mínimo de dignidade. E assim, todos vingaram. E não só vingaram, como ousaram sonhar com futuro melhor. Mesmo passando mais de 50 anos em cima da lama.

E aí eu nasci, no meio de um monte de gente sonhadora.

Ainda lembro, quando vinha da Vila dos Cabanos, de ver pela brecha do assoalho, os peixinhos de vala, de ver os mussuns passeando, de andar pelas pontes. Mas quando vim morar definitivamente aqui, não havia mais as pontes, as grandes obras de engenharia do governo deram algum tipo de melhoria pras nossas vidas.

Nós tínhamos algumas poucas certezas nos dias ali: ia ter comida, cuidado e amor; a vovó ia arrumar briga com alguém; a tia Dina ia pular o portão uma vez por semana; algum morador ia embora e logo chegaria outro; e ia chegar alguém pra almoçar sem avisar; o carapanã ia dar um samba na gente; ia ter goteira e rato.

Mas todos tínhamos um sonho. Um dia a gente ia dar certo e íamos ter onde morar, uma casa nova, nosso cantinho, nossa privacidade e poder contribuir pro bem-estar da vovó. Entendendo que se o sonho virasse um pesadelo, tínhamos sempre o coraçãozinho de táuba.

Em 2020 eu fui embora, depois mamãe, papai e Amaranta foram também. Em, 2022, a vovó finalmente saiu da casa de madeira e foi morar na casa de tijolo, no final do terreno.

Nesse tempo, algumas pessoas passaram temporadas na casa de madeira, mas agora foram expulsas pelos ratos. Sim, invasão de ratos em pleno 2024, podem acreditar. Foi aí que começamos a especular a demolição da casa.

Nesse final de semana, mais precisamente no dia 02 de março de 2024, a ideia virou realidade. Sem morador além dos ratos e dos cupins, a casa de madeira, histórica casa da família Nunes, que abrigou tanta gente sonhadora, foi pro chão. A casa de táuba caiu, Mas não se desespere! Se precisarem, tem a casa de tijolo, no final do quintal, vovó sempre deixa a porta e o portão (FECHA ESSE PORTÃO, MARLENE) abertos.

E agora temos um quintal gigante, as crianças da nova geração podem brincar e os jovens, os adultos, podem fazer festas e ainda os saraus.

Todas as gerações continuam sonhando. Só vamos parar de sonhar quando ninguém, NO MUNDO, precisar encarar tantos desafios, em meio à lama, para sobreviver.”

 

 

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