O intermediário e a chuva das três
Por
aqueles dias, eu fazia a 6ª série no Jarbas Passarinho, lá detrás do bosque.
Estudava no intermediário. Um horário que ninguém gostava. O horário da fome.
Eu
não tinha bronca nenhuma do horário. Dava pra chegar em casa na hora de
acompanhar os eletrizantes episódios de ‘Perdidos no espaço’, de ‘Daniel Boone'
e ainda sobrava tempo de formar a grade na pelada de travinha, pelas calçadas
da Mauriti.
E
não era horário da fome, não. A gente saía de casa, ao menos com um bico de pão,
um Q-suco de groselha, um isso, um aquilo qualquer que a mãe ajeitava pra
enganar o estômago. Depois, na hora da merenda (naquele tempo não se usava
ainda o anglicismo ‘lanche’), a gente tinha um desconto. Sempre rolava alguma
coisa substanciosa na escola, Um macarrão com picadinho, um caldinho de feijão
com arroz, um macarrão com picadinho, um caldinho de feijão... Um macarrão...Depois,
no portão, a gente comprava um chope da pura uvita e pronto, transformava
aquela refeição num apreciável, verdadeiro e inquestionável almoço (lunch, para os britânicos).
O
intermediário era um horário cercado de preconceitos imediatos, mas depois, com
o tempo naquela batida bipartida entre a manhã e a tarde, a gente acostumava e percebia
que, assim como os horários ditos nobres, tinha as suas vantagens e
desvantagens.
Dentre
as desvantagens, a hora da saída, era a que tinha mais realce. E nem era de
todo um problema. Era um momento delicado mais neste período de início de ano,
quando a batida da campa coincidia exatamente com os exuberantes, afortunados e
certeiros pingos da chuva das três. Era batata. Quando a gente tava se aprumando
pra zarpar, o pampeiro arriava.
Às
vezes a chuva me pegava pelo meio do caminho. Aí, não tinha outra: ou eu
procurava uma marquise (coisa bem difícil de achar naqueles idos da década de
70, na pedreira), ou encarava o toró. Não podia ficar preso, pela chuva. Tinha
o Seriado de Aventura, né.
Numa
dessas, dancei. E em alto estilo.
Nem
bem tinha me adiantado na 25,
a chuva veio. Mais que depressa, tirei a camisa. Com
ela, fiz uma trouxinha pra abrigar meu material escolar. Tirei os sapatos e,
com a trouxinha numa mão e os sapatos na outra, ganhei o mundo, às carreiras.
Quando
eu estava na frente da Mesbla, percebi alguém em desabalada atrás de mim. Me
parou e perguntou se eu não tinha perdido um livro assim, assim. Falou que
tinha visto um menino apanhar do chão um livro na 25, depois da minha passagem
por lá.
Larguei
os sapatos por ali e dei uma olhada na minha trouxinha. Caramba, necas do meu
livro de História! Voltei na mesma pisada. Nem dei que naquele momento, meu par
de sapatos Vulcalite estava sendo levado pelas águas abundantes que reinavam em
forte correnteza pelo traçado inclinado da Lomas.
Perdi
meu livro e meus sapatos naquela chuva. Mamãe passou dias me ralhando por causa
da minha lerdeza.
O
livro, não comprei outro. Varei o ano emprestando aqui e ali. Complicado foi
enganar a inspetora um bom tempo, indo de chinela pra aula. Tive que recorrer a
uma boa, inofensiva e necessária mentira: todo dia amarrava uma tira no dedão
do pé e lambuzava o curativo com uma aguada de urucum. Quando a madame (não se
usava, na época, também, o detestável ‘tia’) me parava no portão e perguntava
pelos sapatos, respondia com a cara mais sofrida que podia expressar, que tava
com um golpe difícil de sarar e que não ficava bem ir pra escola com um lado de
sandália e outro de sapato. Ficava assim, com um baque meio zambeta. Ela olhava
pr’aquela marmota no meu dedão, se apiedava e abria caminho.
Por
aqueles dias, eu continuei voltando pra casa na chuva, afinal, os inadiáveis
compromissos da idade me aguardavam e também porque, menino, a gente sabe, não tem jeito
que dê jeito.
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