sábado, 11 de abril de 2015

crônica da semana - 44 papo amarelo

44 do Papo amarelo
Logo ao entrar na primeira rua de seringa, deu com um trançado de palha obstruindo o caminho. Sacou o terçado e em duas ou três planadas destruiu o obstáculo. Desconfiado, naquele dia, cumpriu apenas a metade da tarefa. Voltou para o barraco mais cedo. Arrumou as pelas defumadas no fundo da canoa. Contou os víveres, desfez-se da carne de caça e do resto de querosene. Recolheu os sacos de aniagem que estavam espalhados pela pequena praia que o Iriri formava entre o pedral e arrumou neles os pertences da mulher e dos meninos. Lustrou a pá dos remos com óleo de uma árvore pródiga para aliviar o atrito e dar-lhes ligeireza na água.
Na manhã seguinte foi recolher as tigelas que faltavam para completar a cota da seiva. Não andou nem a metade do dia anterior. Assustou-se com um mutum pendurado no meio da picada, bem pertinho do barraco. Pescoço cortado e sangrando recente. Era o aviso.
Foi só tempo de chegar em casa, carregar as coisas, pôr a família na canoa e fugir.
A mulher e o filho mais velho tomaram conta dos remos, os dois menores sumiram no meio dos sacos de aniagem no fundo da canoa. Ele se posicionou à popa, engatilhou o 44 e começou a  atirar. Os índios disparavam as flechas, lançavam-se à água, atacavam com fúria. Não sabe quantos índios derrubou com o 44 de papo amarelo. Mas afirma que foram muitos.
Ouvi esta história do Seu Adalberto, ex gateiro e ex seringueiro do Xingu, quando ele foi cozinheiro da minha equipe de geologia, em Altamira.
Sempre me contava sobre os primeiros e difíceis tempos lá no alto do Xingu. O conflito era constante. Os seringueiros avançavam, os índios atacavam. Destruíam, matavam. Os seringueiros revidavam. Incendiavam, dizimavam aldeias inteiras (me contou casos de crueldade extrema em que crianças índias eram lançadas pelos pés e tinham o crânio esmagado contra o tronco das árvores. Por outro lado, contou também, ter visto seringueiros sendo partidos ao meio com uma bordunada de um índio forte. A violência era recíproca, vasta).
Os acampamentos que a gente montava para a pesquisa, pelo comum eram localizados no ermo. Lá pra dentro da mata. Não tinha luz, água encanada, geladeira. Era tudo no mínimo. O divertimento da equipe, ao final do dia era o baralho, o dominó, um cigarrinho. Eu, como não jogava, pegava meu candeeiro, um livrinho, procurava um jeito na rede e passava o tempo. Quando não, ia pra cozinha traçar um papo com Seu Adalberto. Era homem de muitas histórias. Das refregas com os índios, narrou o termo das coisas na ação do sertanista Chico Meirelles. Depois do contato, muitos seringueiros acabaram morando em aldeias, convivendo perto. O cozinheiro foi um deles. Adalberto derrubou muito índio. Adalberto virou índio.
Uma noite, superando o zunido dos mosquitos em volta do candeeiro. Adalberto lembrou o tempo que trabalhava para uma empresa da Vale que pesquisava ouro em Marabá. Certa vez, enquanto esperava a turma que havia descido para o igarapé pegar água, foi pego por uma patrulha do exército. Adalberto, homem de tantas histórias, foi enterrado vivo.


Nenhum comentário:

Postar um comentário