domingo, 12 de maio de 2019

crônica da semana- cabeça para baixo


De cabeça para baixo
Uma tarde dessas de tanto calor de a gente ficar com cara de pupunha, me larguei a abelhudar minha bregueçaiada. E nessa terapia mormacenta de mexe aqui, desembrulha ali, escacavia, vira, e torna a desvirar, encontrei um atlas daqueles antigos. Dei uma folheada. Deitei na cama e com os braços estendidos, equilibrei o livrão aberto nas páginas centrais. Certinho na parte que estava a imagem do mapa-múndi. Manobrei sobre a cabeça o fascículo que era parte de uma enciclopédia que mamãe tinha comprado e pago os olhos da cara por ela, quando eu ainda era ginasiano, numa escola lá detrás do Bosque. Como se fosse o guidon do carro, mantendo o equilíbrio, virei o mapa pra direita, pra esquerda, os continentes, os oceanos se deslocando. Enrolei tudo e o mundo ficou de cabeça pra baixo.
Larguei o atlas de lado, pulei da cama, caminhei até a janela e procurei o Norte. Nessa hora o tachi me pegou bem no baixo ventre e ficou, aquela dor me doendo enquanto me via também com a outra dor da dúvida.
As voltas que dei no mundo, subindo, descendo, pra lá e pra cá ativaram em mim a cuíra. Desconfiar das representações é o caminho para confirmar regras, consagrar verdades, desmascarar mentiras, deixar de ser arrogante e deixar também, de ser besta.
Nem desconfiei do Norte enquanto uma manifestação da natureza. Enquanto um componente polar de um sistema magnético. E nem do fato dele ser um lugar definido. Um ponto coordenado geograficamente. O que me levou à suspeita, foi esta representação do Norte ser na parte de cima do mapa. Desta soberba espacial, cismei.
Quando enrolei todo o volante do meu atlas e pus o mapa-múndi de cabeça para baixo, validei o aprendizado que guardei do filme “2001: uma odisséia no espaço”. Não há uma condição, uma posição real que possamos assumir ser considerada como de cabeça para cima, de cabeça para baixo ou para os lados. Tudo é uma representação e uma defesa de interesses.
O filme tem uma cena em que uma tripulante caminha pela nave. Em determinado momento surge uma parede na frente dela e ela sem o menor esforço ajusta o passo e continua a caminhar sobre a superfície da parede. Pra gente que assistia parecia que ela estava de lado. Mais a frente, outra parede e um pequeno corredor. Novamente ela ajeita a passada. Do ângulo da filmagem, parecia que ela caminhava de cabeça para baixo. À saída do corredor, o plano de filmagem é modificado e a moça parece estar andando normal de cabeça pra cima de novo (lembrem que ela entra no corredor de cabeça pra baixo). O recado para mim, da sequência, é aquele já aviado e exposto. A posição no espaço estabelece a importância da cena. As inspirações que provocam as imagens são ditadas pelo ponto de vista de quem produz a representação.
O Norte poderia muito bem ser representado na parte de baixo do mapa-múndi. Mas isso traria os Estados Unidos, a Rússia e toda a Europa para o pé da página. Enquanto levaria ao topo a África, a América do sul e mais à cimeira e à esquerda, a Nova Zelândia.
Voltei a equilibrar o atlas, na cama, com os braços esticados sobre a cabeça. E o explorei todinho virado ao contrário.
Fazia um malabarismo danado em manobras para virar as páginas, coçar a ferrada de tachi e entender de outro jeito as figuras, as dores da dúvida. E naquele calor de correr doido.

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