sábado, 30 de junho de 2012

crônica da semana - a solidão


A solidão é ralado


A tela, ainda que um tanto opaca em alguns pontos, por causa do acúmulo de poeira, me deixava ver a estrada descendo até o igarapé, a margem de mata, o desvio em S para a mina. Se eu forçasse mais um pouquinho a vista, conseguia ver um pedacinho da vila residencial, a castanheira majestosa na terra firme que encaixava um pequeno lago, e a fachada da escola, do outro lado da ponte. 
Esta era a minha paisagem de fim de tarde, naquele Bom Futuro. 
Quando comecei a trabalhar em Rondônia, no início de 1983, fui parar num lugarejo chamado Bom Futuro. Para um garoto de 19 anos, o nome daquela vila era sugestivo. Mas o presente era severo, exigente. De trabalho, de saudade e solidão. 
Foram tempos difíceis. Eu era um bebê. Nunca tinha saído debaixo da saia da mamãe, tinha ganhado recentemente o primeiro (e único) concurso de poesia da minha vida (e achava que havia sido precocemente apartado da fama), cativava amizades sólidas em Belém (que duram até hoje, por sinal), adorava passar as férias na Praça do Pescador...E, por razões que não as lembro todas, havia deixado tudo isso para trás. Uns três mil quilômetros atrás. Varava os dias agora, ali, espreitando a paisagem que me cabia, daquela janela empoeirada, embrenhado nas matas de Rondônia. 
Moravam comigo, um mineiro e um norte-rio-grandense, que não eram de muita prosa. Já estavam há mais tempo ali e tinham suas manhas, seus costumes. Daí, que a gente chegava do trabalho, cada um ia para o seu canto. Eu pegava meu bloquinho de carta, minha caneta, cartas recebidas, fotos, meu violão...ia pra junto da janela e me danava a escrever, bebericando, de vez em vez, umas latinhas (naquela época as latas de cerveja não eram essas facilmente amassáveis, eram mais rijas, fabricadas com uma liga de estanho, componente que era extraído da Cassiterita, mineral que eu pesquisava e retirava da terra ali nas minas de Bom Futuro: éramos íntimos, eu e as latinhas), mirando o quadrado silencioso da janela. 
O cenário que descrevi aí em cima (numa tela ainda que um tanto opaca) é a tradução mais completa que tenho para a solidão. 
Mas existem outras versões. 
A evolução da indústria alimentícia, a correria cotidiana, o paladar pouco exigente e o Ziraldo (depois explico porque acho que o criador do menino Maluquinho tem culpa neste cartório) trouxeram outros elementos para traduzir a solidão. Deles, o mais famoso e circunstante chama-se macarrãzinho instantâneo. 
Apenas uma aba da janela aberta, a casa em semi-escuridão. A mesa desarrumada, um montinho de papéis de contas a pagar num canto, um frasco de adoçante vazio, uma faca suja de manteiga largada sobre uma peça meio úmida do jogo americano, uma cumbuca com uma castanha-do-pará e formiga dentro. Este é o novo cenário. Só falta o macarrãozinho. A solidão é fera. Comer sozinho é a segunda pior coisa do mundo. A primeira é comer macarrãozinho, sozinho. 
Um outro componente, não menos presente, num ambiente sombrio de solidão é o achocolatado, ou para estilizar a matéria com uma metonímia, o nescau. Nada na vida encerra tanta apatia e desânimo quanto dosar a quantidade do pozinho (sempre além da recomendável pelos nutricionistas), mexer a colher para catalisar a mistura com o leite. E depois tomar de gut’gute a bebida, olhando pra parede. A solidão é ralado. 
A solidão é fera, agora, sobre o Ziraldo, é o seguinte: há alguns anos ele deu uma entrevista demonstrando um firme entusiasmo nas propriedades nutricionais e sociais do macarrão. Dizia que o macarrão era a solução para o problema da fome no Brasil. 
Da fome, mas não da solidão, pondero. 


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