sábado, 1 de novembro de 2014

crônica da semana - cipó do tarzan

Cipó do Tarzan
O local de trabalho, via de regra, é aquele ambiente frio, compenetrado. Há, porém, a variação, a conotação. Tanto do local como da natureza do trabalho...
Entrávamos na picada, num plano já um tanto varrido de tantas as vezes que a gente usava aquele caminho. Dali a alguns metros, percebíamos uma pequena inclinação no terreno. Uma suave ribanceira delineava um vale raso, que descia discreto para um leito seco e depois se erguia com a mesma delicadeza, do outro lado. Exatamente na junção das duas margens, no ponto mais fundo do vale, desenrolava-se um enorme cipó. Inteirado a um galho portentoso, o cipó desvelava-se soberano na estreita clareira que se formava no entorno da grande árvore. Pra quê! Era um pé para que a minha turma todinha, formada por pais de família, trabalhadores sérios, conservadores, dedicasse alguns momentos do dia para a prática libertária, de se balançar no cipó. Antes de pegarmos de vera, no trampo, a parada para o recreio no cipó do Tarzan, como assim o batizamos, em vôos alucinantes por sobre o talvegue, era lei.
O local de trabalho, via de regra é...Há, porém, a conotação.
E às vezes, uma impressão sobre o nosso local de trabalho, no lugar do gozo ou da curtição deixa gravada na memória um presságio. Um aviso. Um risco iminente. Uma valência, um milagre. Ou o destroçamento completo da fé estatística.
Contei, na minha lida, aproximadamente 1000 dias desbravando as matas que margeiam o Xingu. De incidentes, encontros indesejáveis, conto com pouca prosa. Uma canoa alagada, um esbarrão com uma onça mais medrosa que eu, um tropeção numa aranha braba. Um abraço de repente num espinheiro rodeado de talinhos amarelos afiados. Uma surra de carrapatos. A companhia indesejada de uma jararaca no punho da minha rede. Nada que me dê deferências de aventureiro na qualidade, muito menos de quantidade. Os sustos, se a gente for fazer um arme e efetue, espalhados pelos mil dias e poucos, resultam numa relação muito das suas sem graça de 1 caso a cada 100 dias, isso, já dando aquela exagerada. Digo, sem titubear, que o meião da selva amazônica é cantinho bem mais seguro que algumas esquinas de Belém.
Mas estas mesmíssimas picadas por onde varava todos os dias ao lado da Transamazônica e que logo na entrada nos recebiam com a folga do cipó do Tarzan, me aprontaram uma que parecia duas. Subverteram a probabilidade certa manhã.
Naquele dia, estava sem a minha equipe. Fazia um trabalho de mapeamento, algo solitário. Um companheiro apenas ia comigo como medida de segurança, e também, para trocar uma prosa, né. Demos uma balançada rápida no cipó e sumimos no trecho. Nem bem esquentamos na caminhada, meu ajudante deu o alerta. Bloqueou minha passagem por sobre um tronco caído, adiantou-se, puxou o facão da cintura, revolveu a folhagem à frente, e de lá saiu com mais de mil, uma teba duma cobra. Estava pronta pro bote. Acuada, fugiu. Cismei. Àquela hora? Nem bem começávamos nossa jornada! Mas continuei. Antes das 9 da manhã, já havíamos nos batido com mais duas cobras pelo caminho. E uma delas era deste tamanhinho, gitita que mal dava pra perceber a pele vermelha escamada. Meu acompanhante identificou: Surucucu de fogo. Veneno bastante pra derrubar cavalo só no trisca.
O susto que acontecia a intervalos de cem dias, aconteceu em menos de duas horas de trabalho. Em três exasperantes episódios. Não contei conversa. Ressabiado, suspendi a atividade do dia, me dei folga e voltei na mesma pisada para meu acampamento, não sem antes dar mais umas balangadas no cipó, pra tirar a angústia do peito... Conotações do trabalho.


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