domingo, 9 de novembro de 2014

cr^nica da semana - Clara

Clara
Um desavisado se surpreenderia ao ver a alva figura num caminhar truncado, pelas estivas esculhambadas da Pedreira. Mas os moradores do alagado, não. Irmã Clara era visita desejada por uma quantidade assim de gente que se arrumava em palafitas no entorno do Centro Social Auxilium.
Fez parte, a freira alemã, do grupo que conduzia a pastoral das irmãs salesianas, no início dos anos 80. Tive o prazer de partilhar várias ações com as religiosas do Centro Auxilium. Cabe dizer que a interação não era muito fácil. Ao contrário do colégio dos padres onde as atribuições de cada um eram diversas; as coisas aconteciam, do outro lado da Alferes Costa, de um jeito bem divididinho. Lá, cada irmã com a sua causa. Irmã Lísia cuidava do semi-internato. Firmina, dos grupos de jovens, estas as freiras com quem eu tinha mais contato, principalmente irmã Lísia, que me cuidava quando eu chegava por lá cansado e na broca, me aviando um cumê e um alento embaixo do ventilador da cozinha. Mas conhecia também a irmã-educadora que dava oficinas de empunhar redes, a irmã-administradora, a irmã-diretora. Irmã Clara era a irmã-enfermeira e se algum dia, o povo da Pedreira for escolher os nossos santos domésticos, irmã Clara vai ter meu voto de prima, em caráter certo e irrevogável.
Certo é que as irmãs priorizavam a ação pastoral intramuros, assim como os padres do outro lado, adotaram a educação, como linha de evangelização. Natural então, que a freiras cuidassem mais das urgências que se mostrassem ali, em seus domínios. Instalações da escola, infra-estrutura, direção pedagógica inspirada em D. Bosco, formação cristã.
Por isso, quando um desavisado topava com irmã Clara varando as pontes da Pedreira e Sacramenta, estranhava. Não era comum ver as filhas de D. Bosco na rua. A vontade de Deus (acredito nisso), no entanto, aquela que subverte as conformidades e regras, para nosso bem e ajudando bastante para o bem de toda Santa Igreja, nos trouxe Clara, para os igapós.
Sempre acompanhada, porque a idade adicionada a compleição germânica agigantada exigiam cuidados, de uma ou duas meninas que ela mandava vir das Missões do Rio Negro, irmã Clara percorria as passagens, os chagões mais escondidos aplicando injeção, fazendo curativos, atendendo uma receita, prescrevendo um cuidado. Era incansável. Dava o expediente na escola, mas se um chamado houvesse, não contava conversa. Catava as meninas e se abalava. Muitas vezes era vista com seu hábito alvíssimo desafiando a noite para completar uma dose, adiantar um emplasto, realizar uma tapotagem num bebê catarrento.
Muito articulada com os pares europeus, Clara, naquele tempo,  conseguia com a freqüência e a quantidade suficiente, medicamentos que até hoje a sistema de saúde pública do Brasil peleja e não consegue, e se consegue, é daquela forma :falha aqui, ajeita ali, falta acolá.
Irmã Clara era a responsável, também, pelo suprimento de hóstias na celebração da Eucaristia, inspecionava o sacrário, contribuía para a sobrevivência da congregação como guardadora das sacolinhas que corriam o salão durante o ofertório, arrecadando o facultadíssimo dízimo e às vezes não entendia as novidades que nossa equipe de Liturgia inventava. Torcia o nariz, mas não ralhava não.
Chegava bem antes do início da Missa. Acendia as velas do altar, aprovava o vinho, o bordado dos guardanapos, lustrava a patena. Sentava bem na frente e toda vez que me via me chamava e dizia que tinha conhecido uma Sodré lá no alto Purus, eu lhe sorria e pensava nas pontes e palafitas do bairro. No altar,“O Senhor esteja convosco”. E a Missa começava.


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