sábado, 18 de dezembro de 2021

crônica da semana - Tim tim

 Tim-tim

Sabe como é que é né, bate um vento dali, eu me enxiro e me inscrevo na toada. Rezo no tom e na voz do absurdo, do destrambelhado, do sem tento. E essa barulhada, então...Um avião zoando perto, pousando de barriga na água guajarina ludugera de triste fim. Mas faz tanto tempo!

Acho que foi um sonho. Por outra, parece que foi só um pensamento criado. Nem foi tão dia desses não. Foi também longe guajarino no tempo e no acontecido.

Rondônia tem muita ladeira e eu vinha na direção de uma picape F75, descendo com mais de mil. A estrada lisa que nem sabão. Aí, pisei no freio. Pra quê. A bicha saiu de banda, feito lagartixa no azulejo. Naquela hora foi tudo e nada. Velocidade e transe. Desilusão e esperança. Queda livre, atrito dolorido de rasgar o coração. Saudade da minha mãe. Da Guajará de novembro no puro banzeiro, das histórias na calçada plena Marquês só na piçarra e sem luz no poste. Vagalumes. Luzes pipocavam aqui, acolá, como se fossem sol do meio dia em São Brás. E a ladeira não acabava nunca. Encandeei. Fiquei ceguinho da silva, sem ver o fim, o barranco, um monturo, um pedral pra dar de encontra e me livrar do desembesto. Descia era com beira. Nessa época tinha amigos novos, de toda parte do Brasil. Os pernambucanos frevavam; cariocas sambavam. Aqueles do sul sapateavam a chula, mineiros cirandavam do jeito deles. Paulistanos performavam algo lírico vanguardista. A picape levantou vôo e recordo que senti uma malemolência, um banzo porque minha turma, aquelas amizades recém conquistadas, imaginei, não mais veria.

Deu duas voltas sobre si, a picape, no ar. Pensei que ia apagar, mas agüentei num passamento que me embrulhou o estômago e me esbugalhou os olhos. Vi o Marajó. Barquinhos, remos talhados na madeira leve, igarapé entrando pelos campos. A água salobra no fim da praia. As luzinhas pararam de pipocar. Os olhos arderam e a picape mergulhou no leito do igarapé que se estirava frio e fundo no limite da ladeira. Silêncio.

Sonho também com um palito de fósforo se apagando. A chama sumindo e aquela fumacinha subindo numa sinuosidade debochada. Destibei! E a picape boiou do tabacuri. Subi junto.

Era tudo verde, calmo e bonito. Era tudo sereno e limpo. Era um vale vago, de uma porosidade eterna. Era tudo sendo nada. A última chance, a única oportunidade. Tudo e nada naquele instante. Um galho orvalhado pela chuva que havia caído à noite toda, castigado a estrada e transformado aquela ladeira numa pista ensaboada, passou em gentil oferecimento bem na minha janela. A água estava no pescoço. Suspirava lembranças e uma força inexplicável. Suspirava súplicas. Agarrei o galho com toda a força que meu universo de gentes, de amores, de lembranças, de saudades, de seduções e crenças, pôde me ceder, e me puxei pra fora da picape. Era tudo verde e mata, água correndo veloz e céu parado. Havia sinais de Iarás, benzeções, mães d’floresta, senhor dos ermos, deus dos afogados, anjo protetor de picape que desce ladeira descontrolada e morubixaba piedoso. Tudo e nada. Um avião zoou barulhento ao longe na história ludugera e triste guajarina. Eu criei asas e saltei para o barranco. Alguém me esperava lá pras bandas de não sei donde. E era pra lá que eu ia. Voltei alheio pelo caminho do feio. Subi a ladeira e sabe como é que é, né, bateu um vento dali, o ar aquecido secou minha roupa e arremedou o assobio de uma canção antiga que diz ser tudo e nada, tão somente, desencontros infinitos.

Tim-tim para quem sobreviveu ao tabacuri.


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