quinta-feira, 23 de maio de 2013

Crônica remix - alguém cantando


Alguém cantando
Ali, à borda da minha sujeição, da minha imprecisão. Alguém cantando. Tomando minhas forças, confortando-se com minhas entregas. Encantando alguém.
Música no lar. Vésperas e antegozos. Suores canalizados, odores volatizados. Intenções: sins, sins, sins...nãos, nãos, nãos. (Negações). Instintos arrefecidos. Silêncio. Silêncio. Eu quero ser feliz. Eu quero, imponderavelmente, ouvir alguém cantando e ser feliz.
Alguém cantando mil versões. Um feixe de culpas retrô. Poesias retrô, filmes retrô, amizades, amores, vaidades, vontades e desejos retrô. Tudo retrô. Retroagindo, Escandalizando a modernidade. A insensível modernidade, enfim. Eu quero não querer viver de novo aquele amor. Quem me dera te apagar a luz no passado e tatear o escuro indefinido sem ti. Sem te sentir. Embora queiras. Os filhos, não nascidos, queiram; os sorrisos à beira mar, queiram (e nem sei se é mar aquela sensação líquida que desanda em mentiras e veleidades, naquele meio de mundo); a luz e o Elias queiram (aquela quando, clandestinamente, te ilumina, e este, quando fraternalmente te beija a face). Se eu pudesse te roubar a luz...
Alguém cantando versos visuais, usuais. Quase silenciosos como as vestes que vestem os monges. Vestes displicentes, bordados foscos de Guevara, dramatizados, romantizados. Quase ensurdecedoras lágrimas de morte. Tum-tum do coração. Batidas febris. Tambores ocos. Gritos roucos. Loucos. Loucos. Numa história com final feliz. Num tom abaixo, é certo. Humilde, desejoso. Mas feliz. Inexplicavelmente feliz.
Alguém cantando, apontando rumos decididos na noite escura. Becos ao longe submersos no vácuo, no vazio, no incrivelmente leve e frio. Melodias sem fim, doces. A aplacar a dor da solidão.
Alguém cantando. Música no ar. Quase Deus. Quase seda. Fina, suave. Quase um nada aconchegante, inócuo, inerte. Quase sonho, fantasia indolor. Cândida explosão no meu coração. Coisa de bar. Samba que chora, sabe, Bossa. Flauta, sax, solos de cavaquinho, Pixinguinha... Na noite sem par. Harmonias que sofrem e fazem sofrer porque não consigo te esquecer estirada naquela mesa. Ausente. Eternamente ausente. 'Divina e graciosa estátua majestosa'. Mãe. Para nunca mais. Para um doloroso nunca mais. Para uma eternidade muito longe, parece que para sempre, incompreensivelmente, inaceitavelmente, para sempre. Que não acaba. Mas que me acaba e me finda, e destrói o que de bom tenho em mim, e enterra meu sorriso nas lamas à margem da bruta urbanidade do nosso rio. Que atrita minha generosidade e benevolência nos declives agressivos e nas traiçoeiras pedras que se justapõem às nascentes do rio Guamá quando ele, corajosamente, golpeia o contrito relevo de Ourém e de Capitão Poço. Um nunca mais que me larga e que me dispersa em mil pedaços ao vento incerto, irrestrito, geral que sopra pras bandas errantes da baía do Guajará. Uma eternidade que me aceita mundano, insensato, incorrigivelmente apaixonado. Apaixonadamente bêbado. Lúcido e translúcido. Sem hermetismos morais. Mas sinceramente inquieto com a longevidade de descorteses sofrimentos, de abrasadores pesares. Ciente da vilania de cínicos carinhos e de gris confidências.
Alguém cantando me lembra da existência daquele mundo do jamais imaginado, do nunca experimentado, do absolutamente impossível. Daquele amor que não pode ser, daquele bem que se esconde. Do mal que se mostra, que vinga, mas que um dia se esvai...
Alguém cantando. Sonho e realidade. Fetiche e implosão. Abençoada voz que me liberta a alma para além do além.
Alguém cantando não é alegre nem triste. É Maria.
É Alba Maria.

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