sábado, 13 de abril de 2019

crônica da semana- a terra é azul


O céu de Beinho
A noite é uma rede trançada em maleáveis mistérios, em medos indistintos.
Para mim, era só uma passagem, uma etapa turva do dia. O custo era eu bater o cartão nas onze badaladas do relógio de ponto e correr para pegar o cristo do Jurunas-Conceição ou do Sacramenta-Humaitá, que meu espírito acuado dava lugar à inspiração e se alinhava com a possibilidade compensadora do encontro.
(Minha mãe estava à minha espera, recolhida junto ao muro que definia os limites da vila em que morávamos. O radinho de pilha captando as ondas da noite, trazendo lembranças, fazendo o tempo passar).
Às vezes, a espera ia além do combinado.
E a noite não era mais aquela rede tecida em suspeições. Redimia-se dos vaticínios e voltava-se à luz dos refletores do Baenão. Ocorria quando tinha jogo e a gente esnobava das artimanhas noturnas, nos adiantando para assistir ainda aos 15 minutos finais da partida. Era o momento em que os portões se abriam para a saída dos torcedores e a minha patota de empacotadores mirins, de supermercado, subvertia o fluxo: enquanto uns iam embora, nós ganhávamos a arquibancada alegres, satisfeitos e atentos aos eletrizantes lances finais do jogo, torcendo pra sair um golzinho no qual pega. Para nós, tanto fazia qual dos contendores assinalasse um tento, o que importava era a euforia de estar na arquibancada depois de uma jornada de trabalho.
(Mamãe não arredava o pé. Sabia que, se demorava, era porque não resistia a alguma tentação de menino. Era comum que nessa espera, tivesse a companhia do Beinho, nosso vizinho, que espiava como notívago, os movimentos da rua. Beinho já era um rapaz taludo, beirava os 18 anos. Tinha só pai, motorista particular de um barão lá das bandas de Nazaré. Não estudava, virava os dias embaixo do pé de acácia mexendo com as meninas a caminho do Donatila. Cultuava o corpo. Tinha braços musculosos, fazia ferro. Eu achava que ele tinha as pernas finas. Exibia-se em arremedos das coreografias do Bruce Lee e fabricou o próprio nunchako, com o qual fazia demonstrações para a molecada da Mauriti e a gente ficava bestinha de ver tanta agilidade, não escondendo o receio de, uma hora, aquela torinha escapulir das ligeirezas dele e fazer uma brecha na cabeça de um de nós. Tinha uma aproximação bem maior com o resto da galera da rua, nas disputas de peteca. Ele era da elite. Triângulo cheio. Disputava só acima de cem petecas. Era também uma das maiores vítimas do alaússa. Metódico que era, raramente encerrava a disputa tecando a peteca de jogo do adversário. O negócio dele era retirar as petecas de dentro do triângulo, uma por uma. Ia enchendo a lata, só na caté. Acabada a peleja, ele ostentava uma lata por acolá de peteca e era nessa hora que vinha um mal elemento e dava o alaússa. Beinho não ligava. Salvava o que podia do seu patrimônio que se espalhava pelo chão. Sabia que no dia seguinte recuperaria tudo de novo. Só na caté).
As estrelas que ponteavam o tisnado da noite eram luzidias, cintilantes, vítreas. Baluluscas, colombianas, ovaladas, raras, matizadas. Muitas e quantas vezes, quando chegava do trabalho, depois das onze da noite, estavam ao pegado do muro me esperando. Mamãe, ouvindo as mais belas canções, no radinho de pilha; Beinho, olhando pro céu minado de petecas.

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