quarta-feira, 17 de setembro de 2014

crônica remix- uma tarde

Uma Tarde
Não entende a presença dela ali, em plena tarde de Sábado. Para ela, o Sábado era um dia sagrado. Dormia até tarde. Tomava um café, ainda com aquela preguicinha  do acordar sem querer e ia despertar realmente,  embalando-se na rede da varanda. Depois, tomava um barril de suco de qualquer fruta regional e traçava o plano de vôo com possibilidades que iam do passeio à casa de amigos a uma fugida estratégica para Mosqueiro. O Sábado não tinha hora pra terminar. Ele lembra que na época da campanha para presidente, tinham uma turma espertíssíma que fazia a diferença na ‘buxixeata’. Eita! Por aqueles dias, o Sábado desandava...
Não tinha por que estar ali, naquela tarde. As pendências estavam todas resolvidas. Nem precisaram de advogado. Foi tudo na santa paz. Tudo bem divididinho. Ela ficou com o carro, ele com a casa na Pirajá. Ela levou toda a biblioteca, e ele herdou aquela belezura de discoteca que incluía aquele disco em vinil, raríssimo, do acreano Sérgio Souto. Tantos anos e não tinham filhos. Ambos levam a responsabilidade de um exame, que pelo grau de importância diante das ‘prioridades’, nenhum dos dois, jamais fará. O caso foi bem resolvido, então, o que a levaria a sua casa numa tarde de Sábado? Ele meio que surpreso, meio que curioso:
- Mas és tu, mulher? Que ventos te trazem?
Ela, prática, decidida e aparentando pressa:
 -Aquelas caixas, lá no quartinho, Posso dar uma olhadinha?
Ele prestativo, quase que bajulador, indicando o caminho:
-Claro, claro...
Enquanto ela cavucava por lá, ele buscou na internet, o último poema do amigo José Miguel Alves. Traga do verso: “O último amigo arde...” Tenta lembrar o gosto do cigarro. Desiste. Ora, a grande responsável por ele ter abandonado o maldito vício estava ali, no quartinho dos bagulhos. “Taí, te devo essa”, murmura, talvez tentando reconhecer que a partilha não fora assim tão justa.
-O quê? – Devolve ela, demonstrando ter ainda os ouvidos mais sensíveis do mundo, emendando a seguir– Achei, achei!
E vai saindo. Ele a acompanha. Despedem-se com beijinhos. Três pra casar (oh, não, pra casar, de novo, não!). De repente, um fogo explodido das profundezas da irracionalidade (aquela irracionalidade do coração, que eles tanto se orgulhavam de desconhecer), aquele fogo traiçoeiro, perturbador, se fez num longo beijo. Um beijo adocicado, fértil, um Nilo de prazer. Que momento!
Tão bom, meu Deus!
Quando os lábios separaram-se constrangidos, procuraram os seus rumos. Tomaram pé e tornaram daquele mundo impossível de existir. Abraçaram a lógica das coisas e entenderam tudo.
Ela se refez. Entrou no carro, puxou da bolsa uns bregueços (umas hastes finas de plástico, de madeira, do tamanho de agulhas de tricô; atracadores, grampos, aquelas coisas que havia recuperado das caixas), e com eles tentou prender os cabelos. Ele aproximou o rosto da janela do carro e confirmou uma opinião antiga:
-Ficas melhor com o cabelo preso.
Não era isso que ele queria dizer. Na verdade nunca tinha as palavras para definir o prazer de vê-la com os cabelos daquele jeito. Não sabia dizer bem o “jeito”: preso, não preso. Não de todo solto. Nem preso, nem solto, sei lá.
Ela, um tanto desconcertada, fez um arranjo rápido com as hastes de madeira e ai, ai, ali estava a mulher da sua vida, com os cabelos misteriosamente arrumados do jeito que ele tanto gostava.
Um sorriso foi o sinal da despedida. Ela deu a partida no carro e saiu para sempre do seu caminho, naquela tarde de Sábado.










Nenhum comentário:

Postar um comentário