Passa pra semana
Esqueçamos
por um instante o ECA porque a melhor parte dessa história é uma cobrança que fiz
lá no Xendengo.
É
que mamãe, por algum tempo atuou no ramo do crediário. Fez uma compra grande no
comércio atacadista, arrumou não sei donde, um cearense danado de bom, dado ao
negócio de porta-em-porta, mandou confeccionar os cartões do Crediário Santa
Luzia e mirou no rumo das vendas. Severino, que além de santo de romaria, era
mascate aprumado, botava pra chulear nas andanças pelas ruas da Pedreira, cheio
de belengodengos: a rede no ombro...panelas de alumínio alçadas pelas mãos
fortes. E vendia que não era fácil o galego. Ele se esforçava porque a primeira
prestação era dele. Ele vendia e eu cobrava. Eu era o famoso ‘prestação’. E me
esmerava nos cartões todos arrumadinhos, amarrados com um elástico encardido de
suor. O trato com a clientela previa o pagamento ser por semana. Fosse o valor
que fosse. E alguns eram tão pouquinhos, hoje fosse, a paga seria coisa de 5
Reais. Mesmo assim, com alíquotas gititas, ainda tinha freguês que me deixava
na mão. Nem bem os meninos me anunciavam “ mãe, chegou o prestação” e a freguesa
já vinha me despachando, “ah, meu filho, ainda não saiu meu ordenado, passa pra
semana, tá”. Eu pegava meu lápis, com borracha na ponta, apagava a data daquele
dia, e anotava a data de ‘pra semana’, no cartão. E assim eu ia me virando de
prestação, nos finais de semana anotando os ‘por conta’ e os ‘em a ver’, nas contas
do Crediário Santa Luzia. Recebendo um pingadinho aqui, outro ali, me batendo
pelo circuito da Marquês, no sábado, que terminava lá perto da mata da
aeronáutica e concluindo a pisada no domingo, rompendo os domínios da Sacramenta,
fazendo arrodeios imensos pra me livrar da matilha ensandecida de Totós,
Blaiques, Baleias e Tubarões, que comigo inticavam.
Eis
então, que havia um cartão que eu estava me enjoando de apagar e mudar a data,
chega minha borracha estava gasta só de ser usada naquela cobrança. Contava já
com três semanas, que eu passava religiosamente naquela casa e nada. Era só o
velho e indigesto ‘pra semana’, pela fuça. Quem me recebia era a mãe, que nem
era devedora de verdade. O compromisso era das meninas da casa que eu nem
sabia, mas depois, por força do ofício, fui saber que eram moças que labutavam
em “casas de divertimento, pra não dizer outra coisa” (palavras de mamãe).
E
foi assim que eu, menino, fui bater no Xendengo.
Depois
de uma tentativa zerada, pra’quelas bandas, em casa, mamãe falou que uma das
meninas tinha mandado recado para eu ir cobrar no dia seguinte, no trabalho
dela. Mamãe deu a letra e lá eu me abalei pra Gaspar Viana numa tarde quente de
segunda-feira. Entrei no Xendendo feito um foguete, fui lá no fundo, indaguei.
A menina veio com o numerário apenas de uma prestação. Ah, sacrista! Reinei. Mais
de três semanas de atraso e fez só uma quita. Saí voado lá de dentro, varando o
escurinho do salão. Bem na porta, errei a passada e pisei de com força no pé de
uma das garotas que sentada estava na batente. Pra quê. Ela me mandou uns
elogios impublicáveis, deu uma cusparada na minha direção e quando fez a menção
de levantar, eu abri na carreira. E ela atrás de mim, me chamando de filho disso,
filho daquilo. Dobrei a esquina da Presidente Vargas, atravessei pro lado do
Palácio, ganhei a Manoel Barata, espavorido.
Só
parei de correr quando não mais a avistei no estirão atrás de mim. Tava na baba.
Os cartões do Crediário Santa Luzia molhados e o elástico que os envolvia,
agora mais encardido ainda de suor. Na carreira, perdi meu lápis com a borracha
roída na ponta.
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