sábado, 6 de setembro de 2014

crônica da semana -xendengo

Passa pra semana
Esqueçamos por um instante o ECA porque a melhor parte dessa história é uma cobrança que fiz lá no Xendengo.
É que mamãe, por algum tempo atuou no ramo do crediário. Fez uma compra grande no comércio atacadista, arrumou não sei donde, um cearense danado de bom, dado ao negócio de porta-em-porta, mandou confeccionar os cartões do Crediário Santa Luzia e mirou no rumo das vendas. Severino, que além de santo de romaria, era mascate aprumado, botava pra chulear nas andanças pelas ruas da Pedreira, cheio de belengodengos: a rede no ombro...panelas de alumínio alçadas pelas mãos fortes. E vendia que não era fácil o galego. Ele se esforçava porque a primeira prestação era dele. Ele vendia e eu cobrava. Eu era o famoso ‘prestação’. E me esmerava nos cartões todos arrumadinhos, amarrados com um elástico encardido de suor. O trato com a clientela previa o pagamento ser por semana. Fosse o valor que fosse. E alguns eram tão pouquinhos, hoje fosse, a paga seria coisa de 5 Reais. Mesmo assim, com alíquotas gititas, ainda tinha freguês que me deixava na mão. Nem bem os meninos me anunciavam “ mãe, chegou o prestação” e a freguesa já vinha me despachando, “ah, meu filho, ainda não saiu meu ordenado, passa pra semana, tá”. Eu pegava meu lápis, com borracha na ponta, apagava a data daquele dia, e anotava a data de ‘pra semana’, no cartão. E assim eu ia me virando de prestação, nos finais de semana anotando os ‘por conta’ e os ‘em a ver’, nas contas do Crediário Santa Luzia. Recebendo um pingadinho aqui, outro ali, me batendo pelo circuito da Marquês, no sábado, que terminava lá perto da mata da aeronáutica e concluindo a pisada no domingo, rompendo os domínios da Sacramenta, fazendo arrodeios imensos pra me livrar da matilha ensandecida de Totós, Blaiques, Baleias e Tubarões, que comigo inticavam.
Eis então, que havia um cartão que eu estava me enjoando de apagar e mudar a data, chega minha borracha estava gasta só de ser usada naquela cobrança. Contava já com três semanas, que eu passava religiosamente naquela casa e nada. Era só o velho e indigesto ‘pra semana’, pela fuça. Quem me recebia era a mãe, que nem era devedora de verdade. O compromisso era das meninas da casa que eu nem sabia, mas depois, por força do ofício, fui saber que eram moças que labutavam em “casas de divertimento, pra não dizer outra coisa” (palavras de mamãe).
E foi assim que eu, menino, fui bater no Xendengo.
Depois de uma tentativa zerada, pra’quelas bandas, em casa, mamãe falou que uma das meninas tinha mandado recado para eu ir cobrar no dia seguinte, no trabalho dela. Mamãe deu a letra e lá eu me abalei pra Gaspar Viana numa tarde quente de segunda-feira. Entrei no Xendendo feito um foguete, fui lá no fundo, indaguei. A menina veio com o numerário apenas de uma prestação. Ah, sacrista! Reinei. Mais de três semanas de atraso e fez só uma quita. Saí voado lá de dentro, varando o escurinho do salão. Bem na porta, errei a passada e pisei de com força no pé de uma das garotas que sentada estava na batente. Pra quê. Ela me mandou uns elogios impublicáveis, deu uma cusparada na minha direção e quando fez a menção de levantar, eu abri na carreira. E ela atrás de mim, me chamando de filho disso, filho daquilo. Dobrei a esquina da Presidente Vargas, atravessei pro lado do Palácio, ganhei a Manoel Barata, espavorido.

Só parei de correr quando não mais a avistei no estirão atrás de mim. Tava na baba. Os cartões do Crediário Santa Luzia molhados e o elástico que os envolvia, agora mais encardido ainda de suor. Na carreira, perdi meu lápis com a borracha roída na ponta.

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