sábado, 11 de março de 2017

crônica da semana - o rato roendo

O rato roendo meu dedão do pé
Reza a lenda que, na biqueira de formular a teoria da Relatividade, e ainda envolto em dúvidas atrozes para definir um pensamento científico revolucionário, durante uma cochilada rápida, Einsten sentiu uma chamegamento no dedão do pé. Um roc roc até gostosinho, simpático, relaxante. Diz-se que, durante a soneca, um ratinho encantado veio roer-lhe as dúvidas e ao acordar, o cientista, já estava com a teoria consumada, batida e arrematada, no cocuruto.
Pode até ser uma invencionice, esta história do ratinho roendo o dedão do gênio, destarte, intenta um proseado curioso para ilustrar o momento único da criação. Mas tem um sentido. Este alheamento, este sumiço do físico e palpável, provocado pelo sono, certamente, dá espaço para a transcendência, para a abstração. O espírito voa em sonhos. E o ratinho vem nos inculcar decifrações, revelações.
Acho que todo mundo já passou por situações parecidas. Um trabalho urgente que não sai, mas que depois de uma horinha de sono, de repente se concretiza. Uma tarefa de escola complicada, que não se esclarece de jeito e maneira, e que, no dia seguinte, no abrir dos olhos, abre-se límpida e inquestionável no pensamento. Um encalacre doméstico sem solução, porque envolve vaidades, grana, posturas vãs, transformado em rio navegável, contornável, possível de ser negociado, após a calma de uma noite de sumiço geral, de apagão. Sabe o que é isso? O ratinho, aquele mesmo do físico alemão.
Este conhecimento, no entanto, é fugaz. Se não for trabalhado no mesmo instante, se a gente não anotar, se não houver registro seguro, impressão e certeza, arrisca fugir de novo. Cair no limbo. É o que acontece comigo quando escrevo, em sonho, meus escritinhos aqui na coluna.
O ratinho vem roer meu dedão, como sem falta, todo dia, na viagem para o trabalho.
É bem cedinho, o caminho é longo, o ônibus que nos leva oferece um certo conforto, recosto a cabeça na almofada da poltrona, fecho os olhos e o ratinho vem.Nem tão prodigioso como o do Einsten, mas marca sempre a presença. Do dia, é o meu período mais fértil. No relaxado do roc roc no dedão do pé, por vezes, elaboro uma crônica inteirinha, durante essa meia horinha de viagem. E toda arrumadinha, com recortes de humor, com pesquisa, uma pitada de lirismo. Justa e encorpada. Sem presunção, o melhor da minha criação literária surge nessa hora do ratinho.
Por vezes, faço duas crônicas, um poema e descrevo a paisagem que imagino estar passando ao largo (porque estou de olhos fechados na antecâmara do sono, do jeito que o ratinho gosta), tudo ao mesmo tempo, em ambientes textuais diferentes.
Este desenvolvimento, no entanto, é um lampejo. Assim que Einstein tornou daquele sono, foi ao bloquinho e rabiscou a essência da teoria, reza a lenda.
Não tenho o costume de andar por aí com um bloquinho de anotações e nem a memória guarda os recados que o roc roc abrandado do ratinho em meu dedão, me entrega. Tão logo o ônibus chega, me despeja à realidade do dia, e minha bota com biqueira de aço toca o chão, tudo se esvai em brumadas lembranças.
 

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