sábado, 5 de abril de 2014

crônica da semana - cruzeiros

Cruzeiros Novos
O dia 31 de Março é uma data marcante para o país, mas para mim, tem uma carga um tanto além. Foi o dia em que perdi meu pai. Há tanto tempo. Contados 45 anos. Na segunda-feira, durante o jantar, juntei meus meninos, engasguei a voz um pouquinho, as mãos tremelicaram de leve, os olhos ensaiaram marejar: anunciei a dor que sentia pelo aniversário de morte de meu papaizinho. A reação dos pequenos foi natural, perfeitamente coerente. Desconversaram e desfizeram o clima mostrando-se surpresos pela minha sensibilidade fora do tempo. Pelos anos passados, disseram eles, já era pra eu ter desopilado desse sofrimento.
A verdade, é que dou, realmente uma valorizada, fantasio. Crio um pesar, até sincero mas, convenhamos, descabido. No entanto, de jeito e de termo, ainda sinto um vazio dentro de mim, confesso.
O aperreio me sacoleja lá por dentro, acho que mais porque nada, absolutamente nada tenho que lembre meu pai. Pra não dizer que nada há, tenho comigo um quadro, uma daquelas reproduções de fotografia, muito mal retocada, em fundo azul desbotado, que retrata meu pai e minha mãe no dia do casamento. Esta ausência de uma relíquia mais aquela de substância ou afeto me leva à invenção, me induz a forjar temas e circunstâncias. Muito do que falo sobre meu pai é prosa criada, ficção. Uma produção alentadora elaborada para me preencher o coração, para me acudir dos tormentos atávicos.
Um socorro, se não de provisões, me vem das impressões. E que bom, porque essas, sim, ficam tatuadas na memória. Minimamente, mas muito confortavelmente, tenho lá no fundo do meu cocuruto o registro, embora sombreado, da voz de meu pai. E em recortes muito particulares.
Penso que se realizaram na minha mente, não nas lonjuras do Acre, porque de lá, além da friagem, não guardo nada. Mas sim, em uma das vindas do meu pai a Belém, para visitar a família, por aqui, já estabelecida.
O que me está envolto nesta espessa bruma de recordações que tenho é um notável enlevo no jeito de falar. Devia ocorrer assim, quando ele chegava dos ermos da floresta, dos comboios, das grandes jornadas. Alguém perguntava das andanças. Ele impostava a voz e desandava em trinados altivos, solenes. Da mesma forma, o mosaico da memória se reconstrói na sonoridade de suas vindas a Belém. Com certeza, minha avó, minhas tias, mamãe lhe buscavam detalhes da viagem. E o eco do tempo se faz em entonações elegantes, perfeitamente modeladas, na expressão “Cruzeiro do Sul”. Era aquela soberba dicção, confirmando a companhia aérea que viajara. Redesenho a opulência de meu pai na hora em que declamava os termos “Cruzeiro do Sul” e conjecturo, naquela hora, um seringueiro das brenhas falando como um homem rico, engalanado, referindo-se a empresa aérea como se fosse a própria constelação.
Outra locução idealizada é aquela que se refere aos negócios, aos embates nas transações com a borracha. Diria, o meu seringueiro, ainda aos seus ouvintes curiosos, demonstrando entusiasmo com o conhecimento que tinha da dinâmica monetária do país, que agora as operações pecuniárias eram todas realizadas em “Cruzeiros Novos”. Uma pirotecnia multicor invade meus espaços mais silenciosos, quando recrio, hoje, a cena de meu pai sentenciando: “fazemos negócios em Cruzeiros Novos”. E a tal bruma nem se faz tão densa. O céu se mostra azul, a transparência do tempo reduz distâncias e a cadência condoreira, o ritmo sedutor no falar daquele seringueiro que mal sabia as quatro operações, nos põe frente a frente, eu e meu papaizinho. E nem parece que 45 anos se passaram de cá à época dos Cruzeiros Novos. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário