sábado, 12 de abril de 2014

crônica da semana - Golpe beiçudo

Golpe beiçudo
Golpe pra mim, até uma certa idade, sempre foi um talho no pé que se abria em beiços salientes e se sumia pra dentro do calcanhar em carne viva. Invariavelmente, era tratado aplicando-se uma tira retirada de algum trapo à mão, um polvilhado de sulfa, um nó apertado para estancar o sangramento e um cachingamento previdente na ponta dos pés para não magoar a ferida. Para ser um golpe de verdade, com todas as propriedades golpistas tinha ainda que ter como agente causador, um afiado e escondidinho caco de vidro, normalmente à espera de um pé-de-moleque, próximo à linha de fundo de um campinho doméstico ou nos gramados da Duque. Neste caso, do canteiro da Duque, fora dolosamente deixado por lá, por um daqueles sacaninhas insatisfeitos que empastelavam a pelada e jogavam vidro. No caso doméstico não havia dolo não. Era um lixinho do lar esquecido desde a última limpeza no quintal.
Depois, mais taludo, a palavra ‘golpe’ passou a ter uma conotação bem mais dolorida que uma brecha pustemada no pé. Mas não foi assim, tipo zap-zap não.
Quando meus amigos começaram a desvendar as malinagens que os militares estavam fazendo, no poder, eu ali na calçada daquela sorveteria, na estrela, dois cantos após a Escola Técnica, fiquei perplexo. Um tantão assim desnorteado. Não era fã dos militares, mas também não tinha bronca deles. Até admirava o pessoal da farda. Apreciava o garbo, a altivez; atinava para o ar soberano dos pelotões nos desfiles militares. As referências que tinha, inclusive experimentadas na família, é que eram pessoas de caráter inatacável, de índole rebuscada. Lembro que tínhamos um amigo que era PM. Ele nos visitava. Portava sempre um tresoitão. Inspirava respeito. Pisava forte com o par de coturnos sobre o assoalho que se estirava pelo corredor, quando ia tomar um cafezinho lá na cozinha de casa. Lembro. Vez por outra sumia. Depois, muito depois, liguei as conversas que ele traçava conosco, nas suas reaparições, com a guerrilha do Araguaia: viajava para as campanhas.
As histórias que os meninos contavam ali na calçada da sorveteria ajudavam a montar alguns cenários. Fui tomando tento, deixando de ser um moleque alienado por aqueles dias em que a gente se juntava depois da aula e ficava até altas horas da noite trocando experiências, construindo amizades, refazendo destinos, gastando nosso dinheiro da passagem de ônibus em picolés; e depois indo na pátria amada pra casa sob a luz das estrelas, deixando para trás a Estrela, rua que margeava a Escola Técnica, se estendia pros arrabaldes e vinha me deixar na Pedreira.
Éramos uma turma de amigos que mais tarde entenderíamos porque um golpe beiçudo no pé era menos penoso, menos remoso, menos desditoso que todo aquele engalanado pelotão militar que governava o Brasil.
Houve de fazermos uma grande passeata em favor da meia-passagem já no início de uma nova era, a incompreendida fase oitentista. Mas o pau ainda comeu feio na Avenida Nazaré. Uns quantos caminhões ‘tormara-que-chova’ enfileiraram-se ao longo da rua despejando levas de soldados furiosos. No corre-corre, meu amigo de repente parou no meio da rua e apontou corajosamente contra um contingente denso que se aproximava: “desgraçados, desgraçados! A lei de Deus há de pairar sobre vossas cabeças!”. Não mais o vi. No meio da confusão, peguei um transpesco e desabei sobre um caco de vidro. Fiquei assustado quando levantei. Estava com a bata da Escola Técnica. Saquei uma tira da bainha e amarrei minha mão com força para estancar o sangue. Na palma da mão, uma teba d’uma brecha me esclarecia de vez o sentido da palavra ‘golpe’.



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