sábado, 26 de abril de 2014

crônica da semana - pé de galho

Pé-de-galho, o mistério continua
Certa vez formamos contra os meninos da Passagem do Arame. Tinha um amigo que morava lá, o Lourival, que estudava na Aparecida comigo, e ele reservou um horário e o pneu número cinco para uma partida tira-cisma. Sabíamos que ali era a casa deles. Sabíamos que havia uma trinca de garotos malinos que nem jogavam, ficavam só arengando, triscando fogo ao largo. Eram figuras batidas nos porradais do Areal. Mas topamos a parada. O juiz era nosso. Um colega que morava atrás do Pará Clube e que naquele dia tava com uma bifede no peito do pé e não podia chutar. Pé-de-galho foi simplesmente decisivo neste jogo. Parecia que o pneu número cinco era maior que ele, mas quando ele dominava a bola e avançava, as perninhas junteiras destruíam a mais sólida defesa. Numa dessas, a bola sobrou e ele emendou de primeira. O goleiro deles rebateu, a bola fez um passeio um pouquinho além da linha do gol e lá na frente, ele defendeu de novo. Houve um instante de dúvida, mas no momento seguinte, nosso juiz correu pro meio e confirmou: a bola entrou. Foi gol.
Pra quê! A galera que estava fora e só queria um pé, partiu pra cima do nosso juiz. E foi só a conta do alvoroço para que os nossos adversários se multiplicassem furiosos e avançassem contra a gente. Não teve nem conversa. Saímos em desabalada carreira, varando pela passagem do Arame com medo da peia dos moleques malinos. Mas apesar do medo, Pé-de-galho gargalhava e gritava “gol”, “golaço”. E olha, pernas pra que te quero, nessa hora não tinha que dissesse que ele era junteiro.
Naquele tempo as rédeas politicamente corretas não eram puxadas e a molecada não atinava para as eiras das conveniências nem para as beiras da discrição. O apelido foi atribuído ao garoto por causa das pernas juntinhas. Uma conformação anatômica que aproximava bem os joelhos em ângulo obtuso divergente. A gente percebia a colisão nos joelhos mais quando ele estava de calça comprida, o que era raro. Mas sabe como é que é, né, teve um engraçadinho que sacou aquele conflito no andar e tascou o apelido. Não mais vi esse menino, desde quando, no final de mil novecentos e setenta e três, fui morar na casa 71 da Vila Mauriti. Mas ele ficou comigo, na minha memória, nas carreiras felizes de superação que ele dava atrás da bola pelos estirões da Visconde.
O Areal fazia parte de um complexo esportivo forjado pelo povo. Era uma área imensa, no final da Visconde de Inhaúma e fazia fronteira na porção Norte, com o irrevogável igarapé do Zé. No final de semana, parecia um formigueiro de tanto moleque fervilhando pelos quatro alastrados cantos. Limitando o Areal aqui para as bandas da Marquês, ficava o  campo do Asas do Brasil, palco dos disputadíssimos campeonatos de bairro.
A molecada se concentrava mesmo era no Areal, mas numa folga das competições da federação, a gente aproveitava e invadia o campo do Asas. Até grama ele tinha. Traves com redes e marcações do campo com cal (anos mais tarde, já pelo Internacional da Mauriti, joguei neste campo bacana em torneios algo solenes, com organização, tabela de jogos, súmulas, juízes de verdade e pés calçados com chuteiras).
Nestas paradas em que Pé-de-galho era protagonista, a gente jogava ali era no peito e na marra. Invadia, ocupava e resistia. O calibre da minha turma da Visconde era de molequinho ainda e os grandes, de vez em vez, davam uma forra e deixavam a gente fazer uma onda de pés descalços nos gramados.

Eu disse aqui, uns sábados atrás, que o Pé-de-galho, de vera, não existiu. Mas, ran ran ran! Enganei todo mundo. Pé-de-galho existiu sim.

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