domingo, 19 de novembro de 2023

crônica da semana - volta de ônibus

 Volta de ônibus

Houve um tempo em que, eu molequinho bicando a adolescência, dava domingo de tardezinha, me aprontava, passava um talco, um extrato, alisava o cabelo com um tiquinho de Gumex, me ajeitava nos panos, nas vontades e saía, com o sol esfriando, para dar umas boas voltas de ônibus.

Trabalhava, nessa época, numa taberna na Marquês e o local foi usado durante um bom tempo como fim da linha do antigo Vileta. Atendia os motoras, cobradores. Sabia dos gostos deles. Uns encaravam uma merenda pesadona com tudo de direito, já outros, no término de cada viagem, só davam uma prova no cafezinho, ou num traçado com leite. Conhecia todos. Tinha 13 pra catorze anos na ocasião, e agora, gente do céu, no avançar da idade, a memória banca ‘as traição’ e não recordo os nomes. Um ou outro só, ainda me torna, como o de um motora muito popular que tinha o apelido de bombonela porque nos intervalos das viagens, nem lanche farto, nem a frugalidade do cafezinho. Preferia um punhado de bombons para adoçar a lida. Lembro dele também porque algum tempo depois, já nas minhas vivências políticas, o encontrei várias vezes atuando como dirigente do Sindicato dos Rodoviários.

Uma volta de ônibus no Vileta era um programa comportado para o final de tarde, de um domingo. O trajeto da linha é conservador. Não ousa. Não explora as reentrâncias da cidade. Faz um roteiro pelas vias principais dos bairros que atravessa. Para o domingo era uma diversão bastante austera. Passava o tempo, mas não encantava. Valia pela minha moral, porque parceirada que era, viajava sentado no capô, em prosa farta e dispensável com o motorista, não dando a mínima para a plaquinha fixada bem na nossa frente que recomendava falar com o motorista somente o indispensável. Nos momentos de menor movimento chegava até a ocupar a cadeira do cobrador enquanto ele esticava as pernas pelo corredor do ônibus. Era o máximo de minha soberba.

Eu era moleque pra frente, meio independente, tinha meu dinheirinho do meu trabalho de caixeiro. Fazia meus programas de domingo, nas voltas de ônibus até enjoar, sozinho.

Mas esta alternativa de lazer, tenho conhecimento, já foi programa de famílias.

Na Escola Técnica, estudou comigo um pequeno que contava que o pai dele juntava a petizada, não só no domingo, mas a hora que desse na telha, para dar uma volta de ônibus. Só que a linha dele era radical. Aquela que encarava as baixadas do Jurunas, da Pedro Miranda. Em alguns trechos o ônibus forcejava, andava de lado, enfiava-se em brandos atoleiros. Tinha emoção. E era, verdadeiramente realizado, o itinerário, como pauta comum de diversão. Havia a formalidade, todos colocavam roupa de sair. O pai assumia a liderança, pegava o mais novo pela mão, delegava o cuidado com os outros zinhos aos maiores, definia quem passaria por baixo da borboleta, quem passaria junto no apertacunha, e quem pagaria a passagem. Na janela coordenava a vez. Havia revezamento. Menos com ele. Viajava sempre no corredor, para as crianças terem a oportunidade de apreciar os movimentos da cidade pela janela. Na chegada, uma rodada de chope de uvita, groselha, tutifruti, com direito a repitota. Em tudo por tudo era um programa que ia deixando suas marcas.

E deixou.

Dia desses encontrei este amigo. Perguntei pela família. Contou daqueles que ainda estão na lida e com saúde. Lamentou a perda do pai. Demorou-se um pouco e revelou, sem conter a emoção, que a lembrança que mais reforçava a figura de herói, de seu pai, estava naquelas voltas de ônibus.

E eu mesmo que intuitivamente, mas operando no campo do desconhecimento, naqueles tempos, pensava que a palavra ‘indispensável’ que estava na plaquinha do ônibus, queria dizer que só quem podia falar com o motorista era o responsável. O pai ou a mãe. Hoje pondero que há sinais em tudo.

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