domingo, 26 de novembro de 2023

crônica da semana - pai alterna

 Pai alterna

Meu pai era do mato. Riscador de seringueira. Comboieiro. Desse jeito se desenrola a história criada no seio de nossa família para manter viva a imagem, penso que, oportunamente romanceada, do nosso herói da floresta. Na real, conto essas memórias como invencionices de selar casos passados e incertos. Conto na conta do faz de conta. Porque, na vera mesmo, não tenho uma zinha lembrança dele. Tudo que eu sei de meu pai, tenho consciência disso, faz parte da arte de imaginar. O que dá lá dentro de mim, uma frustração aquietada, doce. Sem pretensões nem cobranças rúpteis. Não guardo, é certo, cenas apreciáveis de relações típicas de pai e filhos. Como tantas que se espalham por aí.

É inspiradora, por exemplo, aquela rotina de sábado que eu presenciava na Mauriti, quando moleque, em que um pai, naquele dia, na mesma horinha, atravessava o quarteirão que eu morava carregando as compras que havia feito na feira, e dentre elas, um maço robusto de alface sobressaindo-se além das grossas alças da sacola, ladeado dos filhos. Uma escadinha. O pai na caminhada em direção à Marquês e a meninada agarradinha. Um segurando no cós da bermuda dele, outro beliscando o braço ocupado; aquele maiorzinho pajeando a patota, dando a mão pra um, pra outro e limitando os movimentos da galerinha aos desníveis traiçoeiros das calçadas. E todos num diálogo atravessado de rua, às vezes em saltitos folgados ou em pequenas arengas. O pai altivo, ciente, competente nos cuidados com a turminha. Semblante compenetrado de cidadão responsável, e ao mesmo tempo feliz, como se compreendesse a razão daquela caminhada, num sábado de manhã, como razão da própria vida.

Uma revirada no enredado das lembranças é um pé da gente se atinar para o arremedo, quando da nossa vez. Não me ocorre ter realizado esta batidinha certa de feira com as crianças, em sábados sagrados. Por outro lado, elas costumam resgatar umas quantas varações pelas reentrâncias da cidade. Se puxar uma conversa a dupla destila logo o irrevogável descontentamento de um périplo que fizemos por toda a margem do canal da Pirajá, desde a Aldeia Cabana até adiante da ponte do Galo, já no Telégrafo, debaixo dum sol daqueles. Até hoje justifico argumentando que, chegados da Vila dos Cabanos, era imprescindível que conhecessem o perfil sócio-cultural-estrutural-marginal-invisibilizado-arquitetônico-convulsivo das baixadas. Virei e mexi para me mostrar um pai que dava às crianças, a possibilidade das experimentações. De forma que pra tudo quanto era biboca em que eu me metia, as crianças iam comigo. Então elas me reconhecem na música que escuto, nas confraternizações, nos saraus, no pôr do sol no veropa ou nos escaninhos da Pedreira. Hoje, quando vejo que a maioria dos meus amigos e amigas são amigos também da minha patotinha, entendo que a caminhada foi palmilhada juntos.

Até que houve a desvira. De repente, já não era eu que levava as crianças para as partes ou indicava esta ou aquela play list. Jovens antenados, a dupla era que me inspirava. Passei a acompanhar as crias nos programas delas, houve uma época que eu era de tal forma carimbado nas programações, que me diferenciava da rotina de outros pais. Daí, fui rotulado pela petizada de pai alterna. Aquele que tinha uma conduta alternativa. Uma relação pra lá de liberal com os filhos. Deu que me empavonei nas cores do decolado.

Aí veio outra desvira. Não me convidaram mais. Revisitaram aquelas play lists, até amigos foram selecionados. Com visões mais apuradas, deduziram que sou mesmo é caretão, conservador.

Vou organizar uma desvira para suavizar as diferenças da hora, é que é. Comprar uma sacola, recrutar todo mundo, até a netinha, para fazer a feira comigo no sábado... Instituir a alface como estrela do fim de semana... cortar uma seringa.

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