sábado, 9 de setembro de 2023

crônica da semana - espelho sem aço

 Espelho sem aço

Se minha avó estivesse vendo o Sílvio, um humorístico bandalho com o Zé Trindade, uma profanação das regras com a Dercy, mesmo uma trivialidade, na tarde calorenta de Belém e alguém passasse ou estacionasse a frente da TV, era logo que vinha o carão: “sai da frente, espelho sem aço”.

Isso acontecia naqueles anos de chumbo, solidão e incertezas quando, recém-chegados do Acre, ainda nos acostumávamos com as reações de minha avó ante uma invasão do seu precioso espaço.

E o espaço era a casa da Marquês, que nos abrigou naqueles primeiros dias, depois emendou numa prorrogação, nos viu ficar sem pai, e por fim, não houve escolha: varamos, os acreaninhos, um bom tempo a adensar a coletividade que habitava aquela parede- meia. No pico da convivência, deu a conta certa de 10 moradores. Já pensou? Era muita rede atada. Um só banheiro. Cumê pra essa gente toda, meu pai! Além da alta e grave probabilidade de alguém atravessar na frente da TV em hora de diversão da vovó. Que sufoco!

Nada que a solidariedade, a esperança de um numerário que viria da herança do papai e, sim, sim, o amor envolvido, não superassem.

Por onde se enxergasse, tirávamos os dias na paz. Mamãe arrumou uma marretagem e contribuía no que desse das vendas para o orçamento do conglomerado. Sem luxo, passamos os tempos. Sobrevivemos. Fomos todos pra escola. Consegui uma ‘vaga do governo’ na Aparecida e minhas irmãs se arranjaram todas no Josino. Antes, passamos pela pedagogia da palmatória na aula particular da professora Lurdes, que ficava defronte de casa e a gente não podia nem faltar. Desemburramos com ela. Ao entrar na Aparecida, já sabia boa parte da tabuada e recitava um Ivo viu a uva na maior intimidade com as fricativas.

Durou pouco a minha soberba. Quando a gramática subiu o nível, eu desci a ladeira me embolando com notas baixas. Minha valência é que ao pegado da professora Lurdes morava um rapaz muito considerado na rua, mais ainda depois de fazer jus à boina dos universitários. Foi assim naquele ano (não sei se era desse jeito em todos os certames vestibulares do período plúmbeo militar). Os calouros que raspavam a cabeça ganhavam uma boina.

Pois bem. Conheci, com o calouro de boina, as formas nominais do verbo e descobri que o particípio passado do verbo imprimir era ‘impresso’. O rapaz de boina com muita paciência incutiu na minha cabeça conceitos que guardo até hoje sobre aquelas temeridades do tipo oração coordenada, predicação verbal, partes do discurso e os vários porquês. Me ensejou a salvação quando eu estava na biqueira de uma repitota de série, por causa dessas armadilhazinhas da língua. Graças a ele, passei arrastado, mas passei com um cinquinho na recuperação e me livrei de uns carões da mamãe.

Durante um tempão, ainda cumprimentava o rapaz da boina quando o via pela Pedreira. Fazia com que lembrasse de mim, dava pistas: as casas geminadas, do outro lado da rua, o particípio passado. “Impresso”. Meu cinquinho na recuperação, meu tio. Quando falava do meu tio, ele tornava. “Ah, sim, sim, lembro!” Eram amigos.

Por agora, nas minhas caminhadas pela Marquês, tentando um ganho de oxigênio, uma aeróbica que me dê mais qualidade de vida, passei na frente da casa dele e vi uma placa de venda.

Não o vi mais pela Pedreira.

Reflito que sequer tive curiosidade de pesquisar o sentido da expressão ‘espelho sem aço’. Ou mesmo, como seria um espelho com aço. Aquele, sei o que resultava no comportamento de minha avó. Um carão. E este, com aço, lhe aprazeria? O rapaz da boina teve muita paciência comigo, porque, confesso, por um tempo sustentei que o particípio do verbo falar era ‘falo’. Houve superação desde aquele condomínio de 10 pessoas numa casa de barro geminada. Houve tolerância e, estou certo, uma ponta de amor.

A herança não veio.

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