Espelho sem aço
Se
minha avó estivesse vendo o Sílvio, um humorístico bandalho com o Zé Trindade,
uma profanação das regras com a Dercy, mesmo uma trivialidade, na tarde
calorenta de Belém e alguém passasse ou estacionasse a frente da TV, era logo
que vinha o carão: “sai da frente, espelho sem aço”.
Isso
acontecia naqueles anos de chumbo, solidão e incertezas quando, recém-chegados
do Acre, ainda nos acostumávamos com as reações de minha avó ante uma invasão
do seu precioso espaço.
E
o espaço era a casa da Marquês, que nos abrigou naqueles primeiros dias, depois
emendou numa prorrogação, nos viu ficar sem pai, e por fim, não houve escolha:
varamos, os acreaninhos, um bom tempo a adensar a coletividade que habitava
aquela parede- meia. No pico da convivência, deu a conta certa de 10 moradores.
Já pensou? Era muita rede atada. Um só banheiro. Cumê pra essa gente toda, meu
pai! Além da alta e grave probabilidade de alguém atravessar na frente da TV em
hora de diversão da vovó. Que sufoco!
Nada
que a solidariedade, a esperança de um numerário que viria da herança do papai
e, sim, sim, o amor envolvido, não superassem.
Por
onde se enxergasse, tirávamos os dias na paz. Mamãe arrumou uma marretagem e
contribuía no que desse das vendas para o orçamento do conglomerado. Sem luxo,
passamos os tempos. Sobrevivemos. Fomos todos pra escola. Consegui uma ‘vaga do
governo’ na Aparecida e minhas irmãs se arranjaram todas no Josino. Antes,
passamos pela pedagogia da palmatória na aula particular da professora Lurdes,
que ficava defronte de casa e a gente não podia nem faltar. Desemburramos com
ela. Ao entrar na Aparecida, já sabia boa parte da tabuada e recitava um Ivo
viu a uva na maior intimidade com as fricativas.
Durou
pouco a minha soberba. Quando a gramática subiu o nível, eu desci a ladeira me
embolando com notas baixas. Minha valência é que ao pegado da professora Lurdes
morava um rapaz muito considerado na rua, mais ainda depois de fazer jus à
boina dos universitários. Foi assim naquele ano (não sei se era desse jeito em
todos os certames vestibulares do período plúmbeo militar). Os calouros que
raspavam a cabeça ganhavam uma boina.
Pois
bem. Conheci, com o calouro de boina, as formas nominais do verbo e descobri
que o particípio passado do verbo imprimir era ‘impresso’. O rapaz de boina com
muita paciência incutiu na minha cabeça conceitos que guardo até hoje sobre
aquelas temeridades do tipo oração coordenada, predicação verbal, partes do
discurso e os vários porquês. Me ensejou a salvação quando eu estava na biqueira
de uma repitota de série, por causa dessas armadilhazinhas da língua. Graças a
ele, passei arrastado, mas passei com um cinquinho na recuperação e me livrei
de uns carões da mamãe.
Durante
um tempão, ainda cumprimentava o rapaz da boina quando o via pela Pedreira. Fazia
com que lembrasse de mim, dava pistas: as casas geminadas, do outro lado da
rua, o particípio passado. “Impresso”. Meu cinquinho na recuperação, meu tio.
Quando falava do meu tio, ele tornava. “Ah, sim, sim, lembro!” Eram amigos.
Por
agora, nas minhas caminhadas pela Marquês, tentando um ganho de oxigênio, uma
aeróbica que me dê mais qualidade de vida, passei na frente da casa dele e vi
uma placa de venda.
Não
o vi mais pela Pedreira.
Reflito
que sequer tive curiosidade de pesquisar o sentido da expressão ‘espelho sem
aço’. Ou mesmo, como seria um espelho com aço. Aquele, sei o que resultava no
comportamento de minha avó. Um carão. E este, com aço, lhe aprazeria? O rapaz
da boina teve muita paciência comigo, porque, confesso, por um tempo sustentei
que o particípio do verbo falar era ‘falo’. Houve superação desde aquele
condomínio de 10 pessoas numa casa de barro geminada. Houve tolerância e, estou
certo, uma ponta de amor.
A
herança não veio.
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