sábado, 23 de setembro de 2023

crônica da semana- Feira Pan

 O feldspato e o tremelique nas razões

Escrever no dia seguinte à jornada intensa da Feira Pan-Amazônica do Livro e das Multivozes tem a medida exata e ainda fresquinha dos atropelos comuns aos instantes incomuns. É que hoje, a minha carruagem virou abóbora. Todo o fulgor, aquela convulsão, as imersões em descobertas, o papo cabeça vão se apagando a uma velocidade da luz sem luz e dão lugar à rotina operária, à tensão produtiva, ao labor inclemente e duro, ao humor contido, ao amanhecer sedento de ânimo e de energia. A atmosfera literária, intelectual, abstrata e agradavelmente despressurizada, dá lugar à concreta valia, ao relógio de ponto, à rigidez implacável da produtividade. O dia seguinte à Feira Pan, requer a mudança de personalidade, o desapego de adornos e discursos, a reviravolta no ser e estar. Faz a exigência de um outro eu a me dominar. Mas já foi de muito mais impacto esta viração de casaca. Já ocorreu o tremelique das razões. O choque já foi de volts tantos de não se medir. De me deixar meio atarantado, por um isso assim em tempo de errar a letra e a fala. Hoje sai de cena o escritor e volta ao comum dos dias, o operário. Abandona-se o autógrafo em favor do carimbo. Deixo o limbo leve das palavras e me lanço ao chão frio e bruto (ao mesmo tempo, sagrado provedor de cumê e algum prazer), do chão da fábrica. Num sacolejo de entontecer os pensamentos. Digo até que agora, é destrambelho fácil de se arrumar sem grandes contorcionismos de conduta. Mas há alguns anos, a liga era mais intensa. Ainda tinha o feldspato...

Foi no tempo em que eu era aluno temporão do curso de Geologia, trabalhava de turno, tinha duas crianças pequenas pra cuidar e ainda traçava estas heróicas linhas a hora do dia que desse. Era quatro em um. Vivia várias personalidades numa velocidade alucinante e que ganhava relevo nesta mais espetacular sequência: saía de Barcarena ainda com a estrelas pinicando no céu. Enfrentava a travessia e rezava a todos os santos pra chegar e pegar ainda o final da primeira aula na Federal. Nessa época, fazia uma disciplina ligada a Mineralogia e a estrela da vez era o feldspato, um mineral que até a Universidade nem maldava que tinha tanto valor científico. O bichinho na vera era o astro naquele período. Tomou todo o semestre. Adentrei naquele mundo miudinho e que contava com a tecnologia das lâminas de vidro, do microscópio, requeria umas apreensões de ótica, das revelações da luz polarizada. Era uma disciplina que eu considerava engalanada, empoada nos poderes acadêmicos. Ali, sentado, decifrando a história do feldspato no microscópio eu me via como um ser superior, dominador das ciências. Até que batia a campa, eu saía correndo, me despindo pelo caminho dos rigores científicos, atravessava a baía meio-dia e pegava o turno da fábrica já abraçado ao cabo de uma pá, ao comando de uma máquina, ou à assepsia do ambiente de trabalho. Do cientista, nem lembrança. Depois de bater o ponto, casa. As crianças dormindo (raramente dava pra exercer a versão pai). No outro dia, de novo Federal e de novo trampo de peão. Virava a escala e ia para o turno da madrugada. Federal durante a manhã. Tentava ser pai de tarde, e à noite cumpria minhas oito horas na lida. Entre uma jornada noturna e outra, sem dormir um tico, aparecia o escritor. Nem tinha computador nessa época. Era tudo na minha Olivetti. Um pouquinho de pai de novo e tirava uns dias de folga. Enquanto descansava do trabalho, carregava as ‘pedras’ de feldspato, me aviava como pai e buscava inspiração para um verso, uma prosa. Era quatro em um. Mas não aguentei não. Abandonei o feldspato, adaptei outros eus e busquei dias mais brandos, mas de forma alguma distendidos ou levianos. Muito pelo contrário. Densos, ainda densos, como estes de adaptação, ao pós Feira Pan. 

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