sábado, 14 de outubro de 2023

crônica da semana - A chuva da santa

 A chuva da Santa

Antigamente, antes dessa doideira climática que nós humanos ensejamos em termos e rumos perigosos, as chuvas do ano eram marcadas por referências bastante reconhecíveis e previsíveis. Eu sou do tempo da chuva da Santa, e ela vinha exatamente como agora, depois desta secura do mês de agosto e pouca indicação de chuviscos em setembro. Era batata. Batia outubro e ela começava a se assanhar. Podia até não cair, mas se assanhava até que no sábado ou domingo do Círio, arriava. Os dias absurdamente quentes deste ano, a falta de ensaio e os alertas de ondas de calor me fizeram crer que passaríamos batido na chuva da Santa dessa vez. Mas quando, homem de pouca fé! Para a Santa não tem dificuldade que não seja superada. Quando estava na Presidente Vargas, sábado, benzinho na chegada da romaria fluvial, alertei a família para uma nuvem se formando em cima de nós. Tínhamos a netinha como a mais nova integrante da nossa patota, na recepção à Santa e uma correria ali pra proteger a pequenina, naquele instante por causa de uma chuva repentina nos deixaria num sufoco. E agora a gripe certa, depois por causa do mormaço! Rapidola fizemos um plano de dispersão. Só que a nuvem fez menção, fez que despencava, mas não despencou, foi-se com o vento. Agora, no domingo, depois da procissão, o pampeiro deu o desconto e arriou valendo! Bem na hora em que nos aviamos no almoço, acolhidos pela sombra generosa do quintal. Foi um corre-corre pra livrar a terrina do pato, a panela da maniçoba, a bandejinha com salada, da chuvarada que não tinha termo e nem direção. Foi, porém, o custo de tudo de arranjar para folgarmos a valer. Nos divertimos segurando a tenda armada no quintal para que o vento não a levasse pra longe, manejamos rodos e vassouras esgotando aqui, ali uma sensação de alagamento dos pés; a molecada piriricou nas biqueiras e em regozijo, apreciamos a reedição de um evento cultural e religiosamente íntimo de todos nós paraenses: as bênçãos da mãezinha vindas do céu, nos mostrando que mesmo que a gente tenha maltratado o planeta e que o tempo dê suas destrambelhadas, ainda há uma chance. Ainda podemos mudar o curso da história, recuperar um pouco do prejuízo ambiental, represar as ameaças e garantir por mais uns bons anos, um Círio molhado. Ninguém cria que ia chover nesse fim de semana. Choveu e choveu bem. Não foi milagre, foi conformidade. Está escrito na história dos Círios, descrito nas estatísticas e memórias, que uma horinha, ao tempo e à vez, chove. Sabemos disso. Reconhecemos e nos entregamos de gosto à chuva da Santa com fé, satisfação e aquela algazarra boa que se instala sem travas nessa hora. Sem nenhuma barreira de recato ou pavulagem. Me meti foi com beira também naquela desordem redentora.

Estava precisando desopilar. A semana que antecedeu o Círio foi brabíssima. Daquelas chumbadas de três esferas que pesam dentro da gente e nos levam pro fundo. Bem aos olhos da Santa! Difícil pra mim conviver com a brutalidade, a insensatez. A alienação do que nos faz iguais. O distanciamento da propriedade que nos torna fruto da mesma árvore: o trabalho, a batalha diária. Me abalam posições, reações que nos põem, nós os peões, em desalinho. Choro, me recolho nos escaninhos da revolta. Chega me dá até um tremor, uma febre. A minha valência é poder partilhar. Tenho uma rede segura, afetuosa de amizades que me aparam. Meu ouvem, me entendem, enxugam minhas lágrimas, se colocam ao meu lado. Foi essa energia que me lançou à rua no sábado para o encontro certo com a Santinha, na chegada da fluvial; e o que me reintegrou ao seio reconfortante da minha família. Círio para mim, entre tantas e às vezes desajustadas interpretações, é família.

Esta mesma que me estimulou a lavar a alma com as benditas águas da chuva da Santa no domingo.

 

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