sábado, 7 de março de 2015

crônica da semana- mãe Rute

Dia da mãe Rute
A luz pouca vinda das fretas ou teimando lá de fora do poste da rua catalisava a letargia. Um cansaço incontrolável sobre o sofá da sala. Um visgo sedoso, desleixado, brilhando no pescoço. Calor. Desaparecido de mim, quantas vezes me perdia ressonando desafinado naquele sofá, chegado não sei donde, chirrado, sem responsa, desabado. Como um filho, sem zelo, me estirava relaxado amarrotando o cortinado que cobria o sofá da sala. E ela, quantas vezes, como um filho, me tratava, me atendia, me amparava.
Em silêncio, tateando na penumbra, com o maior cuidado para não fazer barulho, provia um lençol, tirava os sapatos, voltava meus braços caídos para o leito do sofá. Destacava duas tariscas da veneziana para cima e fazia uma brisa boa entrar confortante pela sala. Nessa hora eu sentia um geladinho no pescoço, imaginava um anjo por perto, mas não despertava. Virava de lado e tornava o ressono. O braço saltava vulnerável para as carapanãs. Ela percebia a minha instabilidade, a minha inquietação. Devia pensar “esse zinho bebeu demais”. E ficava por ali, velando. Era só a carapanã sentar e ela contra-atacava. Com velocidade e sutileza, esmigalhava o inimigo sem bulir um tiquinho comigo. No outro dia me contava tudo, todo o caso passado: “se eu não estivesse ali, os bichos te engoliam”, dizia com um ritmo maternal. E não saía dali de perto mesmo, até que a noite esfriasse, eu puxasse o lençol e me protegesse das carapanãs. Tomava um café, ajeitava uma coisinha aqui, outra ali, esmigalhava outra carapanã. Só se aquietava quando percebia a calmaria do sono profundo em mim.
Durante o período que vivi em Rondônia, fui enlaçado pelo carinho irrestrito, fui abrigado pelo colo aconchegante, fui protegido pelo amor imenso de mãe Rute. A rainha do lar dos Borges Guimarães. Mulher sem limites para o bem, sem reservas para as doces humanidades. Fui adotado, me acheguei à mesa da família, sempre sob a égide de mãe Rute. Sabia ela, o quanto eu precisava, ali naquele longe.
Nas malárias, me acudia. E foram três das mais radicais. Internado na solidão de um quarto branco e silencioso, eu sabia que ela uma horinha apareceria. E podia ser uma tarde mormacenta de domingo com as ruas desertas e caladas. Quando eu dava fé, lá s’stava ela ao lado da cama, vendo se o soro tava na veia, verificando um roxinho no meu braço, sentindo uma febrinha na minha testa, acionando a enfermeira para controlar aquelas pontadas no baço. Passava um tempão comigo. Conversava. Falava das novidades da Alexandre Guimarães com a rua Sete, a esquina mais acolhedora da cidade; dava a letra sobre a última peripécia do Saulo, confirmava aquela curiosidade pródiga da Chiara, “ah, e quem cozinhou hoje foi a Cláudia. Berna elogiou que só”. E eu só imaginando as delícias da mesa naquele domingo... “Carneirinho tá pra mina, Éder almoçou com a gente depois foi tocar lá pras bandas da Rondasa. Joferinho tá subindo o rio e chega pra semana. Bena sempre aparece.”
Não descartava um doce para ajudar no tratamento. Levava goiabada cascão. Tinha que recuperar o fígado.
Havia aquele momento que a gente lembrava de Belém, do início de tudo, do casamento, do mercado da juta, do nascimento dos meninos. Do emprego de telefonista.
E me fazia companhia e me fazia recordar e me ajudava a sarar da terçã. E ficava ali, do meu lado, como se minha mãe fosse.

Para Rute que, de fato, minha segunda mãe é, as felicitações e minha mais sincera homenagem pelo dia Internacional da Mulher.

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