sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

crônica pão e meio

Pão e meio

Ela era minha freguesa na mercearia. De quando em quando eu aviava pr’ela duas medidas de óleo Jaçanã apuradas, virava e desvirava a faca sobre a barra de sabão grosso como se fosse um metódico Mede-palmo e tirava para ela um aquele além do que lhe dava direito a regra do retalho, pesava bem pesada uma quarta de charque gorda, meia de feijão rajadinho, uma manteiga salgadinha no papel manteiga, pão e meio...Fazia sempre uma presença, dava sempre um além da conta porque, ora, porque ela me agradava. Levava sempre dois bombons de ganho, como prova do meu afeto. 
Quando dei por mim, Belém, além do balcão da taberna, me apresentava as possibilidades do primeiro amor. 
Eu já era um molequinho assanhadinho. Pequenininho, entanguido, criado, olha lá, olha lá, só na água de arroz: lá pelos treze anos, era repetente da sexta série e ainda nem alcançava direito o jato de água do bebedouro enferrujado da ‘nossa escola Jarbas Passarinho’.  Mas pra frente que só. Atentadinho mesmo.  Boa parte desse meu desprendimento, havia adquirido no tempo em que eu era empacotador de supermercado. Lá, eu dividia espaço com homens feitos, mulheres robustas. Encarava vexames e situações, via de um tudo neste mundo de meu deus. Quando fui pra taberna, já era maceteado, já transitava na casa dos seiscentos, aí conheci a galera da recapagem, os motoras e cobradores de ônibus, os fanchões da vizinhança, os papudinhos que habitavam a sombra da mangueira...Cedo, cedo, tinha mina de informações, teorias fascinantes sobre as dores e prazeres da vida. Me faltava a prática. Foi quando aquela minha freguesa, que morava como agregada, com uma família lá na Angustura, apareceu. 
Até então, eu não amava ninguém. Mas amava Belém. Desde 9 anos virava, mexia e pintava os canecos sozinho pela cidade. Ajudava a mamãe nas cobranças. Fuçava essa Pedreira velha todinha e as suas interações com a Sacramenta, Telégrafo, Matinha. Me embrenhava pela floresta da aeronáutica, pelos regos da Everdosa, corria dos cachorros lá na Mucajá, me perdia nos emaranhados do Acampamento, interceptava os olhos d’água que brotavam lá no alto da Timbó com a Rua Nova, só pra sentir aquele frio, aquela coceguinha borbulhante  na ponta dos dedos. 
Quando dava o domingo, vestia minha roupa de sair e me danava com meus colegas para um passeio de Vileta. Muitas vezes, descíamos pelo caminho, em bairros afastados, como o Jurunas, emendávamos a pisada e explorávamos aquela região fronteiriça com o Guamá, com a Cremação. Palmilhava esta cidade com prazer e encanto. 
(Não fui para a aula no Jarbas. Mormaço e saliência naquela tarde. Na direção da Rua Nova, a Mauriti refletia no asfalto a minha ânsia quente, adolescente. A temperatura ora fulminava minha coragem, ora atiçava meu desejo. Gelo e braseiro. Vou não vou. Minha Belém querida que me acolheu, nas bordas cerzidas de miragens e sonhos nos arrabaldes, era medo e concupiscência naquela tarde. Travessa da Estrela. Meu céu. Belém que eu amava das lonjuras, dos apertos das vilas e chagões, dos quintais  ricos de camapu. Belém desvirginada nas avenidas luxuriantes e nos sedutores beirais. Minha amante gentil. Belém sem porta-seios, descalça, olhos de índia faminta. Meu grande amor Belém desfazendo a minha inocência. Diluindo meus pudores. Compartimentando delícias em mim, me fatiando, me fatiando, na esquina da Estrela, meu céu, floresta de sensações, regos úmidos, índia Belém sem porta-seios). 
Eu amava a minha cidade...E não conhecia os segredos de mulher. Foi quando aquela minha freguesa, que morava como agregada, com uma família lá na Angustura, apareceu.

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