sábado, 5 de janeiro de 2013

crônica da semana- arque´logo


Os caçadores da arca perdida  

Vou ser sincero, e pelo amor do bom pai, não me tenham como um sujeito acomodado, como um apalermado social inerte, sem suspiros desejosos ou aspirações engalanadas. Até já fui assim, franciscano de marré deci, mas de uns tempos pra cá tenho ousado pra caramba e conjugado, um pouco sem jeito e até onde me é possível, o verbo ‘ter’. Ocorre, porém, que este ano de 2012 me foi de tal forma pródigo e dadivoso que poucos haveres me impõem comichões ou cuíras para 2013 (ai, ai, é verdade, é verdade, não consigo me livrar do minimalismo e da pouquidão franciscana. Mesmo diante de tantas tentações e prazeres do mundo, meu alheamento ainda me vence; a apatia consumista aguda me envelopa, um gélido e raquítico contentamento mercantilista me domina, ah, mas deixa, sou feliz assim. Sou dado a bocados). O certo é que, mesmo que eu não queira, para garantir as próximas linhas, vou ter que arrumar um foco, traçar uma meta, uma moda para este ano que principia. 
Eis que, até dia desses, eu tinha uma grande vontade pra satisfazer. Queria porque queria ter um amigo Arqueólogo. Sério. Este era o meu grande déficit existencial. Quando andava por Altamira, pirilampando pelas margens do Xingu, conheci alguns. Faziam campanhas para o Museu Goeldi. Troquei, inclusive, bolas com eles porque na minha inquietação, cavucava as praias, os cerqueiros, achava fragmentos de cerâmica, peças de madeira, algum metal. Arrumava tudo na minha boroca e na primeira chance mostrava pr’eles. Os especialistas opinavam, datavam, localizavam as peças num contexto histórico, ilustravam com uma prosa. Eu ficava maravilhado com os feitos e fins que eles davam a um simples caquinho moldado em argila. E, na minha abstração, reconstruía a história, imaginava os índios apagando a fogueira, enterrando os utensílios, abandonado o baixo curso do rio Xingu, embrenhando-se na mata e migrando rumo à montante numa noite sem estrelas. Eram pessoas legais, atenciosos, profissionais retos, pesquisadores dedicados. Mas nossa amizade ficou por lá, pela Volta Grande do Xingu. Não migrou para o futuro. Não veio dar em nenhum balcão de bar aqui de Belém. E eu fiquei assim, com este vazio no peito. Com essa vontade reclusa. 
Já ia jogando a toalha e transferindo o débito para 2013, quando, na batida da campa, conheci (num balcão de bar) o André, um moço pra lá de legal. Formado em História, poeta aplicado, janota comedido, e olha lá, com especialização em Arqueologia. Pai d’égua! Agora já tenho um amigo para me falar dos sítios relicários, dos objetos imensamente desejados, do culto sem decoro às machadinhas de pedra; um amigo para me reconstituir, a partir de uma migalhinha assim de cerâmica, a reunião de uma comunidade antiga, às margens de um belo rio, sob a tênue luz matizada do entardecer (que no rio Xingu é momento de total entorpecimento). 
Então, se agora estou pleno, satisfeito, o foco é transbordar em 2013. 
Por falar em riquezas acumuladas, em traços históricos, em memórias contidas, vou fazer uma arqueologia da vida, vou fuçar na minha caixinha de bregueços, sondar traços de vitórias passadas; desterrar duros desencantos diluídos no tempo; vou remendar retalhos, vou remedar alegrias e formar um painel sincero e indubitável. Vou procurar decifrar nele algo que justifique os meus cinquenta anos que se avizinham. Vou transbordar também, por causa disso. Razões não faltam. Surpresa, insatisfação, dúvida (e dívidas), os prazeres, as tentações, medo de morrer...Inteirar meio século neste mundo maravilhoso, eterno e fugaz é coisa que mexe com a cabeça da gente, éraste! 

3 comentários:

  1. Raimundo Sodré!
    Agora entendi a arqueologia da tua vontade de ter um amigo da arqueologia
    Muito legal teu texto. E vou te cobrar para fazeres a arqueologia dos teus 50 anos
    Só tenho uma "correçãozinha". Eu não tenho especialização em arqueologia. Eu fui estagiário de arqueologia no IPHAN. E por meio dessa experiência de viagens arqueológicas pelos diversos municípios do Pará, pude conhecer um pouco melhor a história miúda que nos contam os "caquinhos".

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  2. O texto não foi dirigido a mim, mas não tive como não me emocionar. Enquanto alguém que trabalhou na área da arqueologia por três anos, e hoje é mestranda; que já teve que lhe dar com muita piadinha do tipo "e tem que estudar para cavar buraco?", "então você é tatu?", saber que há pessoas que se encantam e se interessam pela área, sem ter em mente a imagem do Indiana Jones... sério, é lindo!

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  3. André, o Sodré tem a arqueologia até no palavreado. Ele é capaz de cavoucar palavras do tempo do "elo perdido". Eu, que não tive a oportunidade de sua companhia num bar, paresque até sou seu arqui-amigo!

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