quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

crônica remix- fúria

(Quase) um dia de fúria
Já estava tudo arquitetado. Seria a minha vingança saramaligna. Um tempão me anulando, desistindo da vida por causa do barulho medonho, que me vem farto dos arredores e, enfim, iria dar o troco com um inapelável dia de fúria.
Como eu já estava sem forças de tanto reclamar, pedir pelo amor de Deus por uma providência, e ninguém (até por causa da hostilidade amplificada do tecnobrega) me escutava, resolvi fazer justiça com as próprias mãos. Não, não comprei uma cartucheira e saí por aí ‘falling down’, dando tiros variados como o Micahel Douglas (ainda me acho menos louco dos que os zoadentos que, literalmente, explodem de cada canto). O barulho diuturno ainda não conseguiu me destrambelhar totalmente. Mas tá quase. A gente sempre fica com uma desmiolagem latejante querendo uma solução drástica, quando o camarada encosta o carro, abre a mala e aciona aquela bomba eletrônica que só toca aquele batidão chato, enjoado, preguento. Ou quando uma festa de aparelhagem passa a noite inteirinha balançando a estrutura da nossa casa e da nossa esmigalhada serenidade emocional.
Abandonado pelo larilari das leis, recorri ao Código de Amurabi e parti para o ‘olho por olho, dente por dente’. Iria aplicar a Pena de Talião e reagiria com as mesmas armas.
Naquele dia, ainda com um refrão torturante zunindo no meu ouvido e em todo o meu ser, lá pelas seis da manhã, quando os meus algozes desligaram o treme-terra e foram dormir, montei minha artilharia. Era a minha vez, rá rá rá rá!.
Arrumei as caixas de som bem na direção da janela dos anjinhos que dormiam exaustos e satisfeitos. Estava tudo planejado. Começaria com o Heavy Metal do Black Sabbath. Sessão completa, com direito a solo de bateria e grunhidos elétricos do Ozzy. Depois, faria uma rodada de Progressivo em doses generosas de Pink Floyd nos cantos e encantos da sereia. Dividiria, também, o conceito melódico do Rock setentista entre os vocais cristalinos do Yes e as extravagantes criações do Gênesis. Na sequência, para perturbar os perturbados da vizinhança, uma pitada daquilo que mais os perturba: o silêncio. Uns instantes de nada sonoro, um vazio pleno (pssssss...silêncio...pssssss).Somente o chiado do vento matinal.
Até que a brisa é interceptada pelos primeiros acordes do Bolero de Ravel. Tímidos, discretos, surgindo humildemente do coração de um clarinete. Daí por diante, ritmos complexos, Cartola, Arrigo barnabé, carimbó da minha vovó e Chico, muito Chico Buarque. Coisas pra torturar mesmo aqueles ouvidos viciados em ásperos e previsíveis tintons.
Estava tudo armado...
Naquela noite, ‘os pessoais’ esmeraram-se na patuscada. Vararam a madrugada com aquela poderosa nave-do-som espalhando decibéis para todo o mundo conhecido. Não teve polícia, norma do Conama, bom senso ou choramingo de criança incomodada que desse jeito. Não dormi que prestasse.
Deixa eles, estava tudo no jeito para a minha forra.
Mas, sabe como é que é, né. O pobre é ralado. Nem quando é pra arrumar uma confusão ele acerta. Não contava com um desastre. O meu aparelho de som três-em-um estava sem a agulha. E toda a minha munição era em vinil. Não tenho nada em CD e, mesmo que tivesse, não tenho aparelho desses poderosos, arrogantes, usurpadores do sossego alheio. A minha arenga se amparava na grandeza de um toca-disco CCE produzido na Zona Franca de Manaus em 1993, ou seja, seria uma pedrinha na testa de um ruidoso Golias. Mesmo assim, eu tava a fim. Perdi a agulha da minha vitrola (e nem me lembro quando foi. A bichinha estava tão pequenina, que uma hora dessas iria se perder mesmo ali pelas brechas do assoalho. Caiu no chão, sumiu. Com certeza, colada a  piaçava da vassoura), e meu plano foi por água abaixo.
Há males, porém, que vêm para o bem.
Agora, refletindo melhor sobre as possíveis implicações do caso, acho que o foi o Bom Deus, Arquiteto do Universo, mesmo que providenciou o sumiço da agulha e cuidou para que aquele meu dia de fúria não se realizasse. Sou da paz.



 

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