domingo, 20 de janeiro de 2013


Vale digital


Eu sempre quis ter uma atividade, um trabalho que fosse por ali, pela Presidente Vargas. Era um anseio meio doido, ser um cara comum, que sai do trampo às cinco, cinco e meia, seis horas e pouquinho, ou naquela hora em que toca a sirene do cais e vai pra uma daquelas paradas apinhadas, debaixo dum chuvisco ou do mormaço da tarde. Um puríssimo citadino se aperreando com a demora do ônibus, cuidando com os lanceiros, roendo uma rosquinha daquelas amarelinhas crocantes e que pregam no dente, ruminando momentos de espera, contabilizando o saldo do seu Vale Digital.  Um ser civilizado submetido a bárbaras tensões ou pressões relevantes, mas considerando sempre estar no leito fervilhante e charmoso da Presidente Vargas. Ainda não tô plenamente nessa insana e maravilhosa lida urbana, mas tô quase. 
A minha vida profissional foi sempre dissociada dos furdunços próprios da pólis. Durante o período em que trabalhei em Mineração, meu dia-a-dia era regrado por condições e relações diferenciadas. Transporte, alimentação, hospedagem, etc...Nada era apegado à ortodoxia, à retidão previsível e habitual. Essas trivialidades de trabalhador, nunca experimentei. Vale isso, vale aquilo, bilhete disto, passe daquilo, tíquete daquil’outro, ônibus lotado, sesta ou marmita preparada de manhãzinha com amor e carinho pela patroa...Nada. Era sempre um jeito variado, fora da ordem estabelecida e, às vezes extremo, das coisas se arrumarem. Houve d’eu sair de casa pra trabalhar, pegar uma lancha, navegar uma hora rio acima, depois fazer a pé mais um tanto estirado de veredas, até o ponto das reais tarefas produtivas. Por outras, deu d’eu levantar da rede, fazer as desobrigas, tomar um café frugal, subir num helicóptero, descer na primeira clareira depois do Ipê Roxo e ser resgatado somente após a primeira lua cheia do Equinócio de Outono, já com as folhas do Ipê caindo. Já aconteceu de deixar meu posto de trabalho e ir almoçar em hotel 5 estrelas (raras, raríssimas vezes, diga-se) mas ocorreu também, d’eu pegar minha marmita, pôr sobre os joelhos, abrigar-me sob umas pindobas de pachiúba, comer uns bocados e ao mesmo tempo, me defender da chuva de água e da chuva de piuns que me consumiam impiedosamente (estas cenas de cumê agoniado, sim, eram  seguidas, pródigas e reincidentes). Sair do trabalho, almoçar em casa, tirar um soninho, dar um cheiro nos pequenos e voltar, esta pegada não marca minha história. E longe, sempre me aprumei a operar meus talentos além, muito além das fronteiras da Presidente Vargas. 
De uns tempos pra cá, saí da Mineração, virei operário em Barcarena e a Presidente Vargas foi se chegando mais pra perto de mim. Hoje, madrugo pelas quebradas da Pedreira, espero o meu ônibus das seis, desço no Veropa (depois enfrento ainda um trajeto bimodal, mas por ora, disso não falaremos). Na volta, dou uma caminhada, arrumo um lugar sob umas das marquises companheiras da Presidente Vargas, e algo se completa em mim quando um ônibus me leva de volta pra casa. 
No dia em que fui buscar meu cartão quis logo fazer a estreia. Voltei um quarteirão na Generalísimo e peguei um Guamá-Conselheiro em direção ao centro, já com o meu queridinho à mão. Quando subi no coletivo, qual não foi a minha surpresa, quando o motorista se virou pra mim, me desejou bom dia, estendeu a mão e me cumprimentou educadamente. Parece que tava adivinhando que era minha primeira vez, que uma coisa tão vulgar e ordinária no cotidiano de um monte de gente, pra mim era um momento de extraordinária envergadura emocional. Voltei um bom dia pr’ele, posicionei meu cartão na maquininha e passei, altivo, orgulhoso por me sentir, agora, um batalhador belemense de verdade. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário