Amar e outros medos (parte XXIV)
Tá
legal, eu aceito a pilhéria, a encarnação. E não dá nem pra tentar um desdobro,
um desvio aos modos de um laço frouxo. Tá amarrado, gravado e nas mídias. Aqui só
não tropeçamos em Sucuri, porque ela, por capricho, deu de escalar árvores na
área central da cidade. Não dá nem pra dizer que não. A Sucuri rebolando
faceira pelos espaços nobres da cidade anda nas cabeças, anda nas bocas.
Antes
de emendar na história da cobra que foi resgatada de uma árvore na Padre
Eutíquio, coisa de um mês atrás, me deixo revelar um medo. É que me impressiono
com as solidões de escadarias. Às primeiras horas da manhã, na saída pro trabalho,
tento catalisar meu acendimento para o dia, enfrentando uns lances de escada do
meu prédio até dar na rua. São aquelas quebras entre os andares, o desconhecido
após cada quina de parede que me impressionam. Meu medo é que numa das dobras,
eu dê de encontro com uma Sucuri. Não uma dessas doces que sobem em árvores,
mas sim daquelas de cinema, ligeiras que nem sei o tanto e com aquele sadismo
expresso em caras, bocas e olhares sedutores. O roteiro é de filme de quinta.
Venho bem descendo os degraus, pensando na morte da bezerra, quando nem que
maldo, zapt, sou enlaçado. A bicha me encara com ar de pouquista, e cicia sem
que faça questão que eu entenda: perdeusssss Ssssssodré, exibindo um palmo de
língua bifurcada pra fora, quase pinicando a ponta do meu nariz. Tenho tempo
apenas de perceber o escorregar do corpo da serpente em volta do meu, um som
difuso de esqueleto quebrando e... apago a aventura do dia. Meu ônibus tá
passando e me avio correr pra parada porque se perder esse, já era.
Este
medo de um enlace rápido é produto dos conflitos íntimos, não ditos e
escondidos no inconsciente guardador de angústias. Não faz parte do meu mundo
real. Se bem que meu cantinho é nas margens no canal da Pirajá... que tem a
nascente nas matas da aeronáutica... que recebe a enchida da maré... e que pode
trazer visitantes para os largos da rua. Penso que convém mesmo dar uma espiadela,
antes de dobrar a esquina dos andares. Vai que...
A
encarnação é franca. Agora, aqueles engraçadinhos que se fartam de satisfação
em polemizar nas redes sociais que aqui no norte a gente se comunica por sinais
de fumaça, usa cipó como meio de transporte e topa a cada esquina com cobras e
jacarés, têm um fato. Tido, havido, acontecido e diga-se, espetacularmente
documentado. Ressalte-se que a pessoa que fez o vídeo teve equilíbrio e
tranquilidade para registrar em detalhes, toda sequência de movimentos que a
serpente fez da base até a parte mais alta da árvore. Cuidou de roteirizar o
serpenteio e nos mostrar a plástica daquela coreografia encantadora.
Agora
pode, o semgraçadinho, tirar uma onda, mas não é pra costume. O bombeiro, na caté,
resgatou a Sucuri lá do alto. Mostrou que a gente respeita os animais, deixou
que ela se assanhasse tomando-lhe boa parte do braço num assimétrico aperto,
mas depois a ela, deu o destino que melhor lhe cabe (pode ser que até a tenha
reintroduzido no habitat, aqui nas matas da aeronáutica, perto de casa... hum,
hum, lá vai eu me impressionar com as escadas de novo).
Sei
de muitas histórias envolvendo Sucuris. Traumáticas. Dramáticas. O instinto nos
põe em lados opostos na luta pela sobrevivência. E aí, temos que destacar as
atitudes da população na hora da aparição do animal em plena via pública. Não
julgou. Não apedrejou, não jogou paus ou pragas. Não maldisse, nem corrompeu a
lei da natureza.
Amamos
Belém. Fantasiamos aventuras ao descer uma escada. Inventamos modas e medos.
Assumimos bairrismos asseverados. Mas dessa vez não tem combate. Não dá nem pra
dar o desdobro. A bichona anda nas cabeças, anda nas mídias, anda nas bocas.
Faceira. Escalando a árvore pleno centro da cidade.
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