sábado, 17 de fevereiro de 2024

crônica da semana - o tempo que o tempo dá

 O tempo que o tempo dá

Eis uma época do ano que me vejo azuruotinho da silva. Não sei que dia é hoje, nem que dia será amanhã ou qual foi ontem. É Carnaval, e até quinta-feira se vive orbitando um limbo libertário, um dia indefinido, nublado, denso de seduções, luxuriante, imerso em perdoáveis pecados, preguiçoso, cobiçoso, cheio de alegria e prazeres abonados pelo sagrado direito ao sonho.

Daí que minha rotina embola toda. Logo eu, heim, taxado que sou de certinho, cronometrado, de movimentos funcionais cartesianos ordenados num eixo xis assim assim de programações.

Parentes, aderentes, família próxima, amigos íntimos, sem maldade chegam a me classificar na categoria dos enjoadinhos. Nada fora da pauta se instala ou altera, sem a mais ferrenha resistência, ou sem uma cara bicuda de descontentamento, os meus planos. Como justifico, sou um cara programável. Se tal coisa me interessa, um evento, um encontro, reunião séria da confraria que seja, ela demanda, no mínimo, uma semana necessária de arranjos e combinas. Daqui pra’li, do dia pra noite, é barra. Difícil pacas de conciliar, de me tirar das habitualidades.

Entretanto, já estive do outro lado do campo. Encarei o jogo sem tática, operando nos atropelos e nas ligeirezas que o tempo exige. Em épocas já remotas, mesmo diante das obrigações se anunciando às beiradas da segunda-feira, não fazia a mínima concessão, não dava limites ao domingo. Tinha a folga do jovem senhor transviado. Descia para os encontros literários na Praça da República, ainda com a cidade se espreguiçando. Com pouco mais, emendava nos batuques entre mangueiras, que se estendiam além do meio-dia e, varando a tarde, compartilhava o tinto imponderável Cantina, com a turminha do Rock ou remanescentes históricos do pedaço, isso quando não desviava rumo e ia dar nas domingueiras do Palácio dos Bares ou nos Pagodes da Anastácia. Não tinha hora de voltar pra casa. Comia pouco ou nada, bebia um tiquinho, uma poeirinha de água; se tinha samba, sambava; fosse carimbó, carimbolava, e a energia se ia apartando de mim, lá pelo adiantado da noite. Dormia tarde e esbagaçado. Na hora do trampo, na segunda, estava só a casqueta. Até tornar, o sofrimento era grande.

O custo foi sacar o tempo que o tempo nos dá. A idade trouxe um adendo de razão, família, as crianças, responsabilidades outras com o trabalho me impuseram freios. Fui me ajeitando. Dosando minhas batidinhas de fim de semana, valorizando a arte solitária de escrever a vida, no aconchego do lar. Não exatamente descartando as seduções mundanas, não, porque elas são nutrientes, compostos vitamínicos, causas e fins de toda a arte. Contudo, me aviei aos cuidados e me ajustei no prumo. Agora, minha lei permite que eu me entregue ao domingo sem eira e beira até duas, ou no muito, três da tarde. Depois disso já é segunda. É termo e tento de desopilar o fígado, arrumar a mochila, os apontamentos, objetos de uso no trabalho, lustrar a bota, desamassar o uniforme e me entregar ao sono reparador cedo, antes mesmo dos gols na TV.

No Brasil não há o feriado de Carnaval. Os dias de folga são deliberações das empresas, instituições públicas que resultam num encarreirado robusto de dias sem trabalho que emenda uma semana n’outra, daí os ariamentos da mente.

No aquietado dos costumes, formatei minha rotina. Esta que se destrambelha no feriadão do carnaval, quando a gente fica desanuviado de nem saber que dia é hoje. Contudo, na manha. Sem sobressaltos ou exageros. Entendendo que uma horinha dessas, a quinta-feira fará as vezes de segunda. O cenário exige prestar reparo e dar atenção ao tempo que o tempo de folia (ou de ócio) nos é possível. Tenho que perceber a hora de desplugar, desopilar o organismo, desamassar a roupa, trocar a percata pela bota. Começar a quinta-feira cedo e terminar cedo porque logo ali tem outro domingo.

Um comentário:

  1. Ainda me falta aprender o hábito de limitar o domingo👏👏👏

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