sábado, 28 de junho de 2025

crônica da semana- o piano

 O piano

Eu dou de ficar vendo essas séries antigas, tramadas no épico e desafiador e calha é de minha moleira mexer e remexer em lembranças. Agora, estou revendo, em visitas encarreiradas à plataforma de streaming, a série Mad Maria. E é num repente que me vejo ali no meio daquela vuca instigante.

A versão para a TV traz uma adaptação do escritor Márcio Souza dos fatos que marcaram a construção da estrada de ferro que deu início à cidade de Porto Velho; e fez por onde e até donde, honrar o compromisso de dar uma saída para o mar à Bolívia.

Tive uma experiência naquelas paragens. Morei na região em um período muito interessante. Rondônia tinha passado a ser Estado recentemente, o governo desenvolvia um devastador modelo de ocupação do território, a mineração de estanho, no interior do Estado e ouro, no leito do Madeira, passava pelos seus momentos de euforia econômica. Com um currículo de meia página, fui bater lá para ganhar a vida no meu primeiro emprego na profissão. Tirando os entretantos e as conformidades da lida, eu me passava era pra’quele sentimento de pioneirismo, de novidade. A história de Rondônia era muito recente. Ao contrário da maioria das capitais da Amazônia, que datavam do Brasil colônia, Porto Velho surgiu um dia desses, no início do século 20. Um lugar bem ali no tempo. E esse aspecto, nos fazia, aqueles que se ajeitavam por lá, conhecer, e por estarmos próximos no tempo, sentir, quase viver o clima dos primeiros anos da cidade, aqueles que compreendiam a construção da Madeira-Mamoré.

Sobre o nome da ferrovia, cabe dizer que é uma referência espacial. A estrada de ferro liga a cidade de Porto Velho no rio Madeira a Guajará Mirim, cidade que tem a fronteira com a Bolívia controlada pelo rio Mamoré. A estrada de ferro ficou conhecida também como a ferrovia do diabo e tenho aqui em casa um livro raro que traz na capa este título. Numa narrativa distanciada de Márcio Souza, o pesquisador Manoel Rodrigues Ferreira descarta os enredados românticos e trata a construção no campo do rigor histórico.

Em uma manhã de folga da minha turma da mineração, praticando a liberdade desregrada da idade, exercendo o direito de aliviar a cuca do confinamento na mata, que o trabalho nos impunha, nos instalamos em uma mesa de bar, ali para um café da manhã. Todos muito jovens, energia potencial além do entendimento físico ou psicológico, emendamos a reuniãozinha no rumo de tomarmos logo a primeira. E assim se deu. Mais uma, e mais uma, e desce uma rodada de sopa. O bar se chamava Canto do Arara e a partir daquele dia se tornou o nosso bar. Ficava na esquina da Sete. E dá de manhã, e dá de tarde, e dá de noite e a gente ali, multiplicando as rodadas, e sopa de novo, e petiscos. Cantávamos, contávamos causos, chamávamos a atenção.  Passantes viraram amigos, amigas, sempre parava um ou uma para entender aquela presepada. Até que Silas Shockness sentou com a gente. Um grande momento. 

A estrada de ferro Madeira-Mamoré foi construída entre 1907 e 1912. A obra foi alvo de muitas críticas que iam da credibilidade dos contratos formados, à segurança e legalidade do empreendimento. Houve de ser conhecida como a estrada em que cada dormente significava uma vida perdida. A grande massa de trabalhadores que atuou na construção era de fora do país. Silas era descendente do barbadiano Charles. Contou tanta coisa. Gostava de falar, ou melhor, relatar, testemunhar. Ele próprio, com o passar do tempo, também fez parte da equipe que operou a Mad Maria fumaça.

Isso foi ali, por 1985. Já vivia há dois anos em Rondônia. Era fascinado por aquele movimento. Muita gente de fora, a plataforma da rodoviária sendo a vida daquele lugar, os refugiados, os pioneiros...

A história viva de Silas, ali na nossa frente. Revelando muito sobre aqueles dormentes e sobre a dama boliviana que escapou do naufrágio no Madeira agarrada à cauda de um piano.

sábado, 21 de junho de 2025

crônica da semana - remador

 Remador, remador

O verso nos alerta: o poeta é um fingidor. E neste causo, o é também, o remador.

Uma aventura aquela. É dos meus tempos fabulosos em Altamira. Contado está que tinha minha atividade de campo, uma equipe numerosa, convivências e cumplicidades. Em outras paragens narradas também contei que no meu plano de trabalho constava um plantão no fim de semana, na frente de operação, a cada quinze dias. De ritmo diferente, carga reduzida. Turma pela metade. Fazíamos uma atividade complementar, sem exigir muito da galera. Com jornada que não varava um período, de forma que, pra banda da tarde, estava todo mundo no pano (que era o código para definir a esticada na rede ou, que seja, dar-se ao lazer e ao descanso merecido). E só pra não ficar assim que era no melzinho, a carga reduzida, o ritmo mais abrandado que falo era resgatar as amostras da semana deixadas ao longo das picadas e isso significava pelo menos duas viagens aos estirões, e transportar para o acampamento, nas costas, quantas amostras (de 20kg cada) fossem possíveis. Era na base da, como se pronunciava por lá, ‘empeleita’. Tinha um ousado que para dar só uma viagem e acabar cedo, trazia quatro, cinco amostras de uma vez, isso em distâncias beirando os 5km, subindo e descendo ladeira, na mata.

Deixa estar que num desses plantões, tudo se resolveu cedo, equipe almoçou, se aninhou nos panos e deu aquela relaxada. Com pouco mais, bateu a cuíra. E quando a patota fica inquieta, arruma coisas pra fazer. Uns descem com anzol e linha para o rio arriscar pegar um tucunaré, outros desafiam quem parte mais lenha no machado, os boleiros procuram competir no futebol, em vazios na mata arremedando campinhos. Dessa feita, me aliei a aventureiros e me enxeri a explorar o Xingu até um sítio arqueológico que ficava no trecho encachoeirado, logo acima do nosso acampamento. Na canoa a remo.

E eu não remo nada. Até Paysandu sou.

O ponto em que estávamos era uma lagoinha, apartada por uma ilha, de um segmento estreito do Xingu, que no verão chegava a 70m de largura. Formava uma corredeira de alta velocidade e muita turbulência. Exigia cuidado redobrado na navegação. Nosso rumo era acima deste trecho. Contornamos a lagoa, demos no remanso. Agora, ‘mire e veja’, bem cima do estreitinho brabo, o Xingu se abria numa imensidão de margem a margem. Coisa de quilômetros, estimo. Essa amplitude explica o alvoroço abaixo. Imagine-se a água que passa em quilômetros, ter que passar numa brecha de 70 metros de largura. É fluxo convulsionado.

Rumamos pra riba, no largo, com cuidado no remo para não embicarmos pro apertado adiante abaixo. Quando falo assim, no sujeito plural, é só mentira de poeta. Verso sem rima. Fake. Não remava era piriricas nenhuma. Éramos três na canoa. Só os outros dois remavam. Eu só fazia menção. Só pose. Tirei até foto, com minha Olympus Trip 35, manobrando o remo e de cigarro estilizando um sorriso de canto de boca. Lorota. Revelo que os meninos pediam até que eu nem enfiasse o remo na água para não atrapalhar. Estávamos na corrente que levava à corredeira braba e qualquer falha, poderíamos perder o controle e sermos arrastados. Depois dessa dica, fiquei ‘estaltinha da silva’.

Um dos condutores da canoa era o Leonel, personagem pra lá de simbólico da cultura ribeirinha. Uma horinha dessas, volto aqui pra falar só dele. Era encantado. Ele sim, remava só na caté. Liderou a navegação e nos levou até aquela maravilha que era constituída de um acúmulo desordenado de blocos rochosos lavado aqui, ali por poderosas corredeiras, e a maioria dos blocos exibindo pinturas rupestres.

Botei pra chulear nas fotos. Delas, acho que sobrou apenas um registro, as outras não resistiram às intempéries. Na foto que sobreviveu, estou ao lado de uma gravura ancestral. Esta comprova este meu relato. A foto que, dizque, estou remando, de tão poeticamente fingidora que era, virou almoço de cupim.

 

sábado, 14 de junho de 2025

crônica da semana - cabeça branca

 Cabeça branca

Acompanhava a setinha do painel trazendo o elevador para o térreo. Tinha uma consulta no décimo andar. Demora. Nisso, dois jovens se posicionam perto de mim. Um deles se adianta, vai até o quadro de aviso instalado na parede, faz um gesto de desdém, volta-se em minha direção e me confronta querendo saber a minha opinião sobre aquele panfleto. Nem tinha notado. Estava na mira era da minha consulta lá no décimo andar. Será que o médico já chegou? Tem muita gente na espera? O que é que eu tenho, meu Deus? O que deu no exame? Não estavam na minha conta, outras preocupações.

Tratava-se de um comunicado alertando sobre o bullyng. Exibia um desenho representando uma criança em sofrimento e um texto reproduzindo argumentos que definem este tipo de prática como crime. Pois então. O rapaz se dirigiu a mim querendo saber o que eu achava da mensagem. Voltei o olhar à parede, fiz um gesto com a cabeça de concordar com o conteúdo e respondi a ele, assim, sem muita profundidade que eu estava alinhado com a idéia expressa ali. Mas cuide, não, que foi um choque para o camarada. Esperava outra resposta. Não se conformou e partiu para a fase de argumentação. O elevador demorou no sexto andar. Descendo.

Voltou-se para mim demonstrando inconformismo e declarou a convicção de que, ao me ver ali, a espera de uma consulta médica, cabeça branca, com algumas experiências vividas, esperaria uma opinião das antigas, conservadora, no rumo de admitir que este tema hoje é tratado com mimimi, como afetação de ‘gente que só leva as coisas pra esse lado’. Pretendia ouvir de mim que no meu tempo essas coisas, essas encarnações se resolviam era no soco. E me pressionou para uma guinada de opinião sugerindo que eu confessasse que fazia isso mesmo no meu tempo de moleque. Partia era pra cima do garoto que mexesse comigo. Outro baque. Reagi, agora com mais energia. Confirmei até com uma legenda temperamental que carrego comigo há anos: Nunca levei e nunca dei um soco em ninguém, na minha vida. Meu revide sempre foi com palavras. Nessa hora, o elevador desengatou do sexto e até o outro rapaz se indignou. Nunca brigou com ninguém? Reconheci a decepção no rosto deles. Jamais contariam encontrar na fila do elevador, uma pessoa da antiga que não confirmasse os modelos midiáticos atuais que eles admitem, de coroas do bem. Infelizmente para eles, eu não era o tiozinho que reproduz mensagens de ódio no zap, aquele que veste uma camisa amarela e sai por aí rezando pra pneu, ou aquele que se estatela em frente ao para-brisa de um caminhão aguardando atenção divina para a intervenção militar. E quando entramos no elevador, já com uma tensão instalada nos separando, ainda ouvi resmungos de insatisfação por causa da mira equivocada que fizeram em mim. Como pode? Cabeça branca?

Sobrou pra mim que subi para minha consulta com aquele peso da geração nas minhas costas. Outra dor pra cuidar.

Eram jovens. Brancos. Pele bem cuidada, roupas de marca. Frequentavam prédios comerciais e não era pra atendimento médico. Por certo, e esta é uma interpretação a partir destes traços que identifiquei neles, e é bem provável que esteja cravada de verdade; na certa, os caras têm a vivência circunscrita a uma bolha social que valida práticas cotidianas que negam conflitos graves como o bullyng. Imagino que dividem o tempo com tios de cabeça branca que anarquizam as políticas de inclusão, preferem ambientes selecionados da elite, para se divertirem a custa da humilhação de outros, e, tudo indica, gostam de resolver conflitos no soco. Não senti remorsos por frustrá-los, por isso a tensão, enquanto o elevador subia. Não confio.

A minha consulta deu tudo certo. Exames no jeito, medicação fazendo efeito. Tudo nos conformes, exceto um amofinamento, um banzo repentino, este fardo pra carregar, esta dor nas costas provocada pela pecha imputada à minha geração cabeça branca.

  

sábado, 7 de junho de 2025

crônica da semana - guarda-roupa de parede

 Guarda-roupa de parede

A conversa surgiu de um chafurdamento nas idéias para um passa-tempo de calçada até que o sol iniciasse a descida no horizonte. A gente trocando uma prosa enquanto esperava o colorido se definir ali na baixa do céu e, no repente, reaquecemos a idéia de partilha, de ombros lado a lado. No explica aqui, relembra ali, cata exemplos acolá, nos demos conta de que algumas das invenções de vida, superações de encalacres, dinâmicas de abrandamento de aperreios, alternativas para ir levando os dias com o que se tinha, foram seivas que percolaram nossas histórias do mesmo jeitinho, com a mesma sustança. Era tática de companheirismo que só mudava de endereço.

Quando veio do Acre com uma meninada agarrada à barra da saia, mamãe não tinha a menor idéia de como iria se virar. Voltou pro colo de minha avó e à proteção advinda de uma pecúnia providente deixada pelo nosso vô, conquistada pelos serviços prestados como Agente Estatístico do IBGE. Foi por causa desta carreira no funcionalismo público que vovô foi bater no Acre. Com razão neste translado é que se deu ensejo aos Sodreres paraenses do Xapuri. Ao concluir a missão, meu vô regressou para Belém e foi morar na Marquês de Herval. Mamãe ficou lá no Xapuri, gerando filho todo ano do seringueiro boa praça que cantarolava pelas ruas de seringa, músicas de Nelson Gonçalves.

Quando desembarcamos do táxi Aero Willys, de confronte a vila do Cruz, na Marquês, meu avô não estava mais entre nós, o seringueiro ficara no Acre cantarolando paixões e mamãe iria assumir a solidão para a vida toda, mas antes, ousaria agregar mais 5 demandas ao orçamento familiar amparado na pecúnia  do patriarca.

Barra pesadíssima aquela. Anos de chumbo. Governo autoritário. Ditadura. Povo cabisbaixo, desdentado, desnutrido. Sujismundo. Repressão a cada esquina. Um bolo econômico que crescia, mas nunca era dividido. Tudo pela hora da morte. Carne vendida no puro osso do contrapeso e embrulhada na folha do Guarumã. Óleo para as frituras aviado na medida pouca, comida aos retalhos. Cuidado, respeito nenhum pelos mais pobres. Os mercados e as feiras eram povoados de saqueiros, engraxates, pupunheiros, picolezeiros, biscateiros-mirins... Trabalho infantil sem nenhuma restrição. Vaga em escola, só se dormisse na fila (o se tivesse um pistolão).

A avenida Marquês de Herval era, bem dizer, uma paragem bucólica. Tinha muito de interior. Vizinhança atenciosa, quintais minados de camapu, silêncios ou, no máximo, sapos e grilos cantadores ao cair da noite. Vaga-lumes clareando a rua carente de iluminação pública. A casa era de barro e geminada. Uma vila construída sobre o suave barranco que margeava a rua de terra. Morando nesta casa da Marquês foi que comecei a estudar na Aparecida. Iniciei pela Alfa, mas logo estava na primeira adiantada, segundo mamãe, porque era muito ‘intelixente’. Sabia contar todo o capítulo do dia anterior da novela Irmãos Coragem. Moramos durante um tempo, tudo misturado, os paraenses genuínos e os acreaninhos. Depois da Marquês foram muitas mudanças. O legado do vô não compreendia casa própria. O que deu, de certa vez, nos abrigarmos os onze da família, num apertado de três compartimentos, um nicho mixo, embora fosse uma casa ‘altas e baixa’.

Até que um dia, nós acreanos, ensaiamos uma desmistura. E daí veio a nossa reflexão dias atrás, na espreita do pôr do sol. Foi sobre esta ação latente no inconsciente coletivo. A divisão da mesma casa para duas ou mais famílias, arremedando privacidade. E o artifício comum à maioria das divisões: utilização do guarda-roupa como limitador de cômodos, como ordenador de espaço, uma parede móvel, submissa às precisões (o banheiro ficava em um dos hemisférios e precisava ser acessado via guarda-roupa). Muita gente que conheço fez isso. Embora não parecesse, fazia parte sim de uma ação de partilhamento. Com ajustes, advogo.

 

 

 

sábado, 31 de maio de 2025

crônica da semana - diário de um comunista

 Bate, escapole e deixa (diário de um militante)

Mais que depressa, escapei pelas ruinhas do centro. Se não sou rapaz, arisco nos guizas e abandonos no vácuo, o canzarrão tinha era me bocanhado com vontade ali, no agoniado da manifestação (que hoje, não sei por que das quantas, chamam de ‘manifesto’. Mudanças, hermenêuticas negacionistas, desconfio).

Nem sei quando me tornei manifestante. Sei que nesse dia que abeirei os horrores da repressão, já era taludinho, alvo certo pra uns transpescos. Se a tropa me alcançasse, os leais combatentes não iriam aliviar. Ainda mais que eu estava na linha de frente, distribuindo panfletos, gritando palavras de ordem, inspirando a revolução.

Sei apenas que, ao chegar do Acre, não era nada, não tinha nada, nem entendia nada. Mal comia, mal dormia, tinha dor de dente e me bati com todas as doenças da pobreza. Uma papeira quase me levou pro buraco. Fui salvo pela freira que atendia na indigência da Santa Casa e pelas espetadas no glúteo de salvadoras doses de Penicilina, aplicadas por ela, sem pena; e que doíam tanto que eu rabeava, ia ao céu, ao aperreio do inferno, voltava, batia, escapulia, ao fim, deixava a dor me dominar para meu bem e para o bem da sagrada teima de viver.

Devo ter-me avermelhado nas idéias por causa de alguém, uma influência do bem. Acho que foi na copa do mundo de 1978. E para esta conclusão, não há tema ou verbo que explique. Simplesmente, maldei algo errado nesta época. Penso que por causa das lições que recebíamos na disciplina de Educação Moral e Cívica lá na Escola Jarbas Passarinho. Ali se exercitava a defesa inconteste do regime em sessões que hoje se equivaleriam ao powerpoint da direita enferma e destrambelhada.

Pensando melhor, localizo em minha mãe, os primeiros movimentos em direção às minhas condutas comunistas.

Vivíamos num quarto-sala-tudo, numa vilinha da Mauriti. Éramos quatro bocas ávidas para alimentar, quatro estômagos para aliviar, crianças para dar o que vestir, lugar para se acomodar, cuidar da moral e zelar pela dignidade. Ainda no meio desse afogueado enredo, mamãe, de vez em quando dava uma doida, e abrigava mais gente no apertadinho da nossa casa da vilinha. Eu lembro de pelo menos duas companhias. A que mais chamou a atenção foi a de uma família de mineiros. Não me consta como os achou. Sei que quando vimos, tínhamos em casa, a mulher, o marido e a menina, uma criança que até hoje lembro o nome: Elis. Estavam magros, tinham poucas roupas e de lavagem fraca que ensejavam odores e encardidos. Fomos nos arranjando e até hoje, quando me deparo com um prato chamado nhoque, que pra mim  é um combinado de massa pra sopa com picadinho, lembro dessa família. O marido era alcoólatra e foi a primeira experiência que vivi com pessoa nessas condições. A mulher, uma guerreira, chamava a atenção pela musculatura potente e farta, não rejeitava trabalho e, de profissão, cozinhava bem pacas. Mais com pouco, voltaram para Minas, tornaram a velhos dramas. Com um tempo, não tivemos mais notícias. Ficou a lembrança do nhoque e a sincera intenção da mamãe de partilhar lutas e dores.

A vivência para mim, sempre significou partilha e foi deste conceito, desta ação humana, que nos valemos durante muito tempo. Em nossa casa, praticamente tudo era advindo de doação, inclusive uma cadeira de vime chique que abrigava uma colônia de microbinhos que pinicava a bunda da gente. Depois, bem depois da nossa chegada do Acre, quando eu já exibia uma carteira de trabalho assinada aos 12 anos, é que adquirimos algo nosso. Meu primeiro salário, usei para comprar uma TV que mesmo em sintonia baixa, aos chuviscados, nos permitiu assistir à novela Xeque-mate.

A partilha para mim, sempre significou alguma realização coletiva. E por isso, desembestei na carreira naquele dia em que os canzarrões, à potentes bocanhadas, dispersavam a manifestação. Tinha muito que realizar ainda.

 

 

sábado, 24 de maio de 2025

crônica da semana - fã número 01


 Fã número 01

Nem bateu a liga assim, de prima. Rolou um estranhamento inicial, até, considero, de parte a parte. Só depois, com os jeitinhos é que a coisa foi se firmando, mais adiante é que os corações foram se enamorando.

Um dos nossos primeiros encontros ocorreu ainda inspirando apresentações. Desde 2010, com a mudança no meu horário de trabalho e a família domiciliada num puxadinho no quintal da Pirajá, a minha presença em Belém se dava somente nos finais de semana. A Gata já habitava a casa principal da vilinha que a gente vivia. Numa dessas vindas a Belém, tínhamos gatinhos novos na casa. As crias estavam abrigadas num confortável escondidinho e achei de abelhudar. Pra quê, quando dei as caras por lá, a Gata se inquietou, fez uma zoeira, reclamou. Não me tomou como morador, viu naquela aproximação, a hora de, pelo expediente da adoção, ficar sem um dos gatinhos, como já havia acontecido das outras vezes que pariu. Em ação decidida, abocanhou os filhotes pelo cangote e mudou a família de lugar. Foi dar lá no nosso puxadinho, num apertado debaixo do tanque. Quero crer que até aquele momento era a Gata da vilinha, andava por cá, por lá, se arranjava com desenvoltura pelas duas casas, mas dali em diante, com aquela movimentação tática, configurou-se uma opção. Estabeleceria a moradia ali, junto aos Sodreres.

Aos poucos, foi se acostumando comigo. Algum tempo depois, deixei Barcarena e vim morar na Pirajá. E nessa rotina de ir e vir todo dia para o trabalho, acordando cedinho para atravessar a baía, tornou-se minha companheirinha nos extremos do dia. De forma que, no horário da madrugada, quando saía, e todos em casa dormiam; e depois, ante o conflito das ocupações de todo mundo à noite, quando voltava, admitia ser a gata a única pessoa que se permitia me acompanhar na hora de sair de manhãzinha e também a única que me recebia ao regressar, cansado e estressado. Anos e anos nesta batidinha só nós dois.

Na Pirajá, também desenvolveu o espírito comunitário. Em tudo em quanto a Gata marcava presença, dava o ar da graça. Era certa a participação dela, e de forma muito ativa, nas festividades de época, aniversários na família e, muito marcadamente, no badalado Sarau do Quintal. Tinha lugar cativo para, atenta, acompanhar as canções, a declamação de poemas e também as performances e danças. Era tida como ilustrada, famosa. Todo mundo queria uma foto com ela no calor das apresentações.

Nós os Sodreres, mudamos da vilinha e alteramos o nosso perfil de convivência. Não teria mais aquele formato comunitário amplo. Seríamos só nós, sem a diversidade da vilinha. Este fator que retrata de certa forma um isolamento, teve um efeito expressivo no comportamento da Gata. Com referências restritas, passou a assimilar um pouquinho das nossas personalidades. Esboçava costumes de um, de outro; Desta fazia menções de carinho; daquela, arremedava aplicação, objetividade. Continuamos madrugando. Me acompanhava no café, todo dia, na varanda, apreciando a Pedreira acordar. À noite tínhamos momentos certos. Ao chegar, tirava as botas, a camisa, sentava numa cadeira confortável e a chamava para a troca de carinhos no meu colo, enquanto esfriava o corpo e a cuca, para tomar banho. Adiante, banhado, ao pegar meu violão, no quieto do quarto, ela logo subia na cama para acompanhar as canções com olhares cândidos. Era minha fã número 01.

Nunca aceitou outro nome, atendia por Gata de bom e sincero grado. No início da semana, dia 19 de maio, a Gata nos deixou. Desde 2023, idosa, passou por três internações. Nesta última, a doença já era avançada, implacável. Foi liberada da clínica para ter seus últimos momentos aqui em casa. Acolhida, amada. Ao chegar, reproduziu aquela cena que realizamos tantas vezes de madrugada. Foi ali pra varanda apreciar a Pedreira. Parecia ter saudade. Esta mesma ferina saudade que hoje nos abate.

 

domingo, 18 de maio de 2025

crônica da semana - amar e outros medos segunda temporada

 Amar e outros medos (segunda temporada)

Vez em vez, me pego visitando o longe (“a miragem”), e sem defesa, me vejo entregue a um comichão reflexivo impactante. Uma batucada em alta frequência faz vibrar a pergunta sem freio, sem barreira. Sincera, consciente, urgida em penosas certificações: Como é que a gente veio dar aqui?

O mês de maio me traz mais um ano contado. Me adianto além dos sessenta revendo meu traçado, revisitando e ousando entender esta desilusão histórica que faz minha geração chorar um olho, remelar outro e manter os dois bem abertos, atentos aos custos de uma  frustração, vigilantes aos remendos possíveis ainda de serem intentados, mesmo que suportados por um inclemente cansaço.

Eu por mim, jamais pensei, nesta dobra sessentona da vida, nesta nova temporada, passar por situações que para mim já estavam superadas, relegadas a um démodé nicho autoritário.

Em 1978, o Brasil empossava o último presidente da ditadura. As greves no ABC ganhavam força, o Brasil saía da Argentina se gabando do título de campeão moral da copa do mundo de futebol, e apesar das brisas de liberdade soprarem discretas pelos céus do Brasil, o regime ainda era uma pedrada, o cheiro do povo incomodava mais que o do cavalo e as bombas continuavam a explodir as resistências democráticas. Um tempo difícil.

A molecada do meu top, na Mauriti, fazia 15 anos.

Dali pra frente, minha turma foi ficando mais taludinha, as coisas foram se ajeitando no país tropical, a sociedade ia-se libertando de algumas das mais ajustadas e incômodas amarras. Um período de transição, de conhecimento, descobertas, reconstituição e releituras de mundo. Nessa época, mesmo no sufoco de uma luta intensa e em várias frentes, havia sinais de humanidade emergentes. Era regra de berço a comunidade abominar o nazismo, Hitler era uma figura desprezada. A educação, mesmo sob a batuta da ‘redentora’, sequer ousou melindrar os postulados científicos. A Terra era redonda, todo mundo entrava na fila para tomar a vacina contra a varíola e a negação não ultrapassava o campo dos advérbios mundanos. Os amores eram adolescentes, aquecidos, incontroláveis. Medo era arte sem serventia. Não contava na conta dos nossos dias. Se era pra amar, a gente amava. Se era pra sofrer de amor, a gente sofria. Caso as conseqüências, nos arrancassem fora o coração, por isso ficava. Tinha aquela música do Vicente Celestino que tocava no programa noturno do Joel Pereira e remendava qualquer coração dilacerado. Tudo valia a pena. Ninguém se largava pra sempre aos lamentos. Não se chorava sozinho por amor. Chorava-se cantando. E além do mais, tínhamos uma revolução pra cuidar.

Avançadas as aventuras, a luta continuava e me vi envolvido em conflitos excitados. Movimento operário, confronto entre capital/trabalho, mãe, filhos, mulher amada, família. Turbulências por cima de turbulências, pequenas alegrias, medo nenhum. Perda do amor de mãe. Perda de poder passageiro e frágil, campo democrático fluido de humores. Medo nenhum de solidão, de sofrer por lutar sem parar, medo nenhum de amar. A vida em veloz evolução. Preconceitos caindo aos montes, Resistências agindo, vozes sendo ouvidas.

Desde a última bomba detonada nas bancas de revistas em meados dos anos oitenta, o país vinha se reagrupando em valores mais humanos, em suspiros coletivos de alívio. Minha turma na Mauriti respirando ao peso do dever cumprido e do cansaço. Hora de uma forra.

Que nada, jamais pensei que, ao alcançar o longe, aquilo que parecia ser uma miragem para um moleque da Mauriti que só tinha o dia e a noite, nunca imaginei que no caminhar de 62 anos conquistados de vida, fosse sentir algo parecido com medo.

Nunca pensei um coração batucar de preocupação ao ver políticos em plena luz do dia, repetindo gestos e discursos nazistas para uma platéia de patriotas. Nunca pensei ser necessário, ter que domar o medo e começar tudo de novo.

 

sábado, 10 de maio de 2025

crônica da semana - os jetsons

 Os Jetsons

Tem uma pá de coisas neste mundo doido que já está demais. O calor é de torrar os miolos. Guerras e covardias bélicas destruindo vidas inocentes, um povinho aí que mente que não se sente; e um espaço interior que nem é mais interior, não é mais nosso íntimo, nem em pensamento. Destaco por ação da Inteligência Artificial, dos algoritmos nossa alma sendo, sem resistência, sequestrada.

Deixa estar que eu folgava na minha caminhada rotineira com o fone de ouvindo ligado numa programação aleatória na plataforma de música; e trabalhava também um pensamento paralelo articulando uma homenagem à minha companheira por ocasião de nova primavera naquele dia. Respirando fundo, soltando o ar devagar ao sabor das passadas ritmadas. Imaginei, para a homenagem, uma postagem com uma foto bem bonita e ao fundo uma música que representasse nossos sentimentos. Me veio uma canção do Chico César: “É só pensar em você/que muda o dia”. Tudo a ver. Demonstração musical de carinho.

Tudo isso, sendo operacionalizado na cabeça, na imaginação, no meu pensamento.

Não é que de repente a mesmíssima música me toca na play aleatória que eu estava ouvindo! Ao perceber os primeiros acordes pensei cá com meus exercícios acelerados de respiração: Égua-te! Do nada o algoritmo capta nossas intenções.Vai direto no pensamento, sequer carece de manifestações concretas para que nossas intimidades sejam alienadas de nós. Eu fiquei passado com aquilo, olha. Cadê nossa liberdade de impressão?

Este mundo de alta tecnologia está me saindo além da encomenda. Fururuca nossa vida toda.

Pensar que umas décadas atrás, inocentes menções, singelas representações de futuro eram vistas de forma descrente, estampavam uma evidente ficção.

Agora, com parte da família morando fora, é comum a gente se falar pelas transmissões de vídeo no celular. E não dá outra, toda vez que pego o aparelho e interajo, me vem à memória o arremedo futurista de antigamente reproduzido pela família Jetson.

Os Jetsons formavam uma família localizada em um futuro que contava com muitos dos artifícios tecnológicos que temos hoje. Trata-se de uma série de desenho animado lançada em 1962. No Brasil ocupou espaço na TV até final da década de 80 do século passado. Atravessou eras exibindo um cenário futurístico, no início e até mesmo no finzinho dos anos 80, difícil de se imaginar possível. Um desses elementos tecnológicos que se evidenciava no seriado era exatamente a forma com que a família se comunicava quando estavam distantes uns dos outros. Utilizavam monitores, executavam um comando e a personagem aparecia na tela interagindo, conversando, estabelecendo uma comunicação verbal e visual na instantaneidade do tempo. Igual a conversa que temos hoje no celular.

Quando faço um contato com meu povo que mora fora de Belém, é inevitável comparar o estado atual de nossa comunicação com a singela menção futurista pregada pela série lá pelos entremeios das décadas de 60 e 80.

Dos avanços mostrados nos Jetsons, acho que apenas aqueles veículos voadores que a família usava para se deslocar pelos céus de uma cidade avançada, não temos ainda em circulação. Tantos outros elementos que compunham os episódios, hoje fazem parte do nosso cotidiano, inclusive a naturalização da Inteligência Artificial, na série, representada pela empregada robô Rosie. Servil autômata, extremamente eficiente, trabalhadora, programada para partilhar o sentimento comunitário, reagir emocionalmente e dar pitacos. De toda sorte, de poder atenuado, porque mesmo ali junto à família Jetson, não interpretava tendências, não elaborava algoritmos e também não executava comando como ler a mente dos seus tutores.

A modernidade tirou Rosie da parada. A gente não topa com robôs distribuídos pelos lares da vida. Não precisa desta interação física, a nossa submissão.

Basta a gente pensar que a música toca na play.

sábado, 3 de maio de 2025

crônica da semana - PS em alto relevo

 Em alto relevo

O sábado passado foi um dia belemense raiz. Amanheceu nublado, daquele jeito doce de não parar ninguém pelos caminhos. Sugeriu, entretanto, uma sombrinha sempre à mão porque daqui pra’li o pampeiro poderia arriar, como de fato se deu já do meio-dia pra tarde. Saí com a família para experimentar as ‘comidas de buteco’ oferecidas ali pelo estirão da Marquês de Herval. E o que se deu neste passeio foi muito além do que previa a minha intenção gastronômica. Aconteceu o reencontro, a reaproximação histórica, a reconstrução do ambiente, a busca por personagens emblemáticos... Tudo já debaixo dum toró daqueles.

O combinado era a apreciação dos petiscos em companhia do meu amigo Paulo, residente e domiciliado no bairro da Cremação e que surgiu na minha vida lá pelas brenhas escondidas de Rondônia. Nos conhecemos em 1985, quando ele chegou para trabalhar na mesma empresa de mineração que eu trabalhava há algum tempo. E veio para me tirar de um aperreio. Me sucedeu numa campanha que dava era medo. Ninguém queria aquela missão. Era realizada longe pacas da sede, para se chegar no acampamento base era um estirão de doer, com as tralhas nas costas, cruzando com rastros de bichos grandes, acompanhado de macacos pequenos, mas algo hostis e carapanãs da maleita ávidos de sangue sem respeitar  a luz do dia. O trabalho era barra pesadíssima. Fase pioneira da pesquisa. Mapeamento. O dia todo andando dentro de igarapés, almoço sempre um engana fome no meio da mata, longuíssimas caminhadas sem perceber a luz do sol. Somente a cobertura verde da floresta e o assombro do esturro de onça pra tudo quanto era lado e às vezes bem perto da gente. Comunicação com o mundo só por rádio. E muito ruim. Passei uma semana encarando os desafios da genuína hiléia, até que, graças ao bom pai, Sérgio chegou para me substituir no acampamento e também, para assumir um papel fundamental no meu futuro.

Ficamos muito próximos. Quando nos conhecemos, era perto do Natal. Ele entrou pro campo, fez um período nas campanhas de mapeamento e eu fiquei na sede. Depois de um tempo, veio passar o Natal com a gente. Foi aí que rolou a química. Eu achei aquele cara espetacular. De um dom para observar, captar detalhes de comportamento, sestros ou costumes nas pessoas que depois reproduzia com arte própria e de forma extremamente graciosa. Não digo que era um imitador. Acho que fazia releituras, reconstruía modos e jeitos, montava cenas, redesenhava fatos, em alto relevo. Tinha um acervo de personagens ligados à infância na Cremação que recriava, que reinstalava no contexto em que vivíamos lá em Rondônia. Ele me apresentou estes personagens na viagem que fizemos da sede da mineração para Porto Velho, por ocasião de nossa folga de Natal. O ônibus, um trambolho. A estrada um atoleiro só. Aqui, ali descíamos para empurrar a lata velha. Uma distância de pouco mais de 100 km, resultou em mais de 6 horas de viagem. E no meio de tanta dificuldade, eu me diverti a valer e me impressionei com a capacidade criativa de Paulo Sérgio.

A narrativa que ele empregava vinha enriquecida de bordões, ou como entendo, dizeres, ditados comuns que marcam as personalidades ou as cenas.

Tenho pra mim que depois dos fraseados da mamãe (“pra mim, tanto faz José como Cazuza”) são do Paulo Sérgio as mais exploradas intervenções verbais que utilizo nas minhas vulgares tagarelices, inclusive me utilizando dos traquejos, trejeitos e falsetes consagrados por ele. Naquele final de 1985 conheci um artista. Autêntico, singelo, cândido elaborador de alegrias.

Mas quando que o mundo roda como a gente pensa, né. Deu-se que seguimos o nosso caminho nos divertindo em acampamentos de mineração em Rondônia e Amapá ou pelas ruas da Pedreira, como sábado passado. Nos valendo apenas e orgulhosamente da permitida arte de viver. Experimentando os petiscos, debaixo dum toró daqueles.

sábado, 26 de abril de 2025

crônica da semana - agulha e linha moda

 Agulha e linha

Eu já contei aqui o vexame que passei por não entender os códigos do vestir social. Relembro: convidado para um evento que exigia traje passeio completo, logo me aviei na bermuda, camisa polo e percata. Na última hora quedei-me a calça comprida e sapatos. Mantive a camisa polo do Paysandu que à época era peça mais cara que eu havia agregado ao meu vestuário. Quando cheguei ao local da festa, tomei um choque, que só não foi maior que o espanto que tomou conta dos meus anfitriões. Estava todo mundo no mais chique dos panos. Os convidados exibiam-se em paletós, blazeres, as mulheres montadas nas mais vistosas maquilagens e em longos finíssimos. Pra completar a derrota, ao entrar, tínhamos que posar para a foto oficial da festa. A cara do fotógrafo foi de um descontentamento total. Eu, obviamente, me senti deslocado. Me acomodei numa mesa de canto, e fui reiteradas vezes confundido com um serviçal do bufê pelos convivas que se distribuíam ao largo, além de, indisfarçadamente ignorado pelos garçons que atendiam no espaço. Só fui beliscar uma coisinha quando um atendente se apiedou de mim. Aí eu fiz um derrame de chopinhos e aloprei nos acepipes.

Foi patetice minha, deveria ter feito uma pesquisa, catado umas dicas pra saber como se vestir nessas ocasiões. As fontes são várias. E olha que eu era fiel à coluna da Regina Martelli, no Jornal Hoje. A jornalista, de certa forma popularizou a narrativa, até então, distante da moda. Eu admirava a descrição que ela fazia dos modelos apresentados em várias reportagens que ela fazia e que envolvia desfiles, cobertura de festas, eventos, figurinos de filmes e shows musicais. De verso fácil, Regina construía graciosos discursos coordenados do tipo “ tricôs leves com brilho, maxicolares étnicos e estampas, desde as florais até as geométricas. Os sneakers não ficam de fora e continuam com tudo. As mulheres adoram salto e os sneakers proporcionam uma cara mais descolada, mais esportiva...” Eu me passava pra esses dizeres precisos, indutores, formadores de imagens.

Enquanto a mídia nacional contemplava uma abordagem mais abrangente da moda e também, admitia a ligação entre o ato de vestir-se bem com a sensação de sentir-se livre, aqui no campo doméstico tínhamos as nossas expressões na arte de coser. E que se ratificavam em camadas integradas de criação e consumo. Nossa terra ostenta nomes bem cerzidos na história como o de Lelê Grello. Já projetou o brilho de Dener para mundo. E também bancou circuitos populares de tal forma potentes, que arregimentavam as ativistas da agulha e linha de áreas afastadas do centro. Aqui na família, lembro das participações na Femip. Era na, hoje, praça Waldemar Henrique. Fazia um sucesso extraordinário, a feira, todo mundo baixava lá para ver nossas manequins exibindo modelos produzidos nos quatro cantos da cidade. A família aqui da Pirajá se organizava para prestigiar a etiqueta ‘Marilene Arte’, marca emergente da nossa estilista carinhosamente chamada de tia Churuca. Profissional requisitada por 10, entre 10 amantes da arte do corte e costura.

Revivi esta atmosfera por agora quando participei da Semana de Moda Amazônica. A mostra contou com um elenco incrível de talentos da região. Os desfiles apresentaram uma leitura ousada na composição visual das peças, com ênfase às cores de referências amazônicas e também a materiais adaptados ao conceito da sustentabilidade. Impressionado fiquei com os modelos apresentados na técnica macramê em tecidos forjados de sacolas plásticas. Um encanto produzido pela premiada figurinista Laila Maia.

Estas experiências, o contato de perto com os talentos, a seriedade da idéia de uma postura libertária diante das exigências de um mercado oxigenado pelo glamour, me dão a chance de revisitar meus constrangimentos. Sem trauma por não decifrar os códigos de um traje passeio completo.

sábado, 19 de abril de 2025

crônica da semana - sem controle

 Sem controle

O domínio das mais variadas vivências que experimentamos ao longo dos tempos passa pela utilização, a mais serena e eficaz possível, de ferramentas de controle que nos amparam no campo emocional, na esfera da convivência social, nos limites do nosso humor, na competência de nossos dons, no desenvolvimento de uma carreira acadêmica ou profissional. Estando o controle ativado, em dia, com as pilhas carregadas, a chance que temos de abalizar destinos é alta e de aplicável previdência. A bronca é quando o controle não responde, quando se faz na bruma incerta, gris, densa do desnorteio.

As minhas entradas pelos enredados da floresta amazônica eram marcadas sempre pelo descontrole, aliás, descontrolar-me era requisito para a realização de demandadas, para o cumprimento das programações requeridas.

Era comum, normal, a cada desafio, eu repetir de mim para mim, a mesma pergunta...

O carro parava em um ponto ermo da estrada, ou mesmo a lancha nos deixava à margem esquecida de um rio poderoso. A gente desembarcava, arrumava as tralhas, a garrafa com água, o di cumê que tinha, e mirava à frente. Logo, a equipe remancheava, dava de ombros. Um tecia um cigarrinho fino, outro procurava moita para uma desobriga de fundo nervoso, este se descalçava para ajeitar o meião, aquele jogava pedra ao longe denunciando indissimulada inquietação.

Eu perdia um tempo divisando aquela imensidão de mata intocada nos esperando, especulava a existência ali de muitos perigos. Abismos, redemunhos, bichos brabos, cobras grandes, onças famintas, espinhos e ervas de toda sorte daninhas e traiçoeiras. E me perguntava, sob controle total de minhas posses, quem, meu pai do céu, que tem coragem de entrar aí? A resposta surgia intensa e imediata: eu.

Da feita que eu dizia ‘umbora lá, gente’, a peãozada largava o que estivesse fazendo e rumava atrás. Íamos varando. E a partir daquele instante eu me revelava sem nenhum controle, me entregava ao transe, não reconhecia medo, mau pressentimento, frio na espinha. Uma cisma sequer se animava. Tinha que ser assim, caso contrário, em plena sanidade, não aparecia coragem para encarar a exuberante floresta amazônica.

Agora, tem outras formas de descontrole, menos carregadas na emoção que cruzar rios e matagais. E tô pra ver, bater nas TVs de hotel.

Por agora, tenho cumprido a necessidade de viajar e pernoitar em hotéis. Dá-se que fui surpreendido com desvios beirando à esquisitice. Uma clássica: se a gente tem o controle remoto da TV ou de qualquer aparelho eletrônico exatamente para evitar que a gente gaste energia chegando até ele, ocorreu a negação desta propriedade. O atendente me levou ao quarto, me mostrou os componentes da acomodação, ligou o ar remotamente, mas quando apontou o controle para a TV, nada. Aí reagiu como todo mundo reage, se danou a clicar descontroladamente. A TV não ligou. Meio sem jeito foi se aproximando do aparelho até ficar bem pertinho. Clicou e... Fiat lux! A bicha acendeu. Ou seja, a TV sem controle só atendia em local. Para ter sucesso o controle ‘remoto’ só agia se acionado de palmo em cima. Já viu isso?

Entretanto a mais assustadora e constrangedora, para mim que creio pouco, foi a situação que identifiquei na jornada em outro hotel, pras bandas de Barcarena. A TV até que era obediente ao controle remoto. Ligava na boa. Mas extremamente reativa quanto à diversidade da programação, inapelável quando a negação ao meu direito da liberdade de expressão ou preferência. Só sintonizava um canal, o de um fervoroso pregador. Por mais que eu empurrasse a setinha pra cima, ou pra baixo, e que o indicador do led mostrasse a recepção do comando, somente o fervoroso se reproduzia pleno na tela, a cada variação de sintonia. Eu, heim, fiquei até com medo. Parecia uma provação. É por isso que este país tende ao hermetismo religioso. É muita pressão. Sem controle.

sábado, 12 de abril de 2025

crônica da semana - é capaz de

 É capaz e é bem capaz

Acompanho a turma que pensa que tal coisa assim, assim é difícil, mas é capaz de acontecer.

Dou fé e testemunho destas surpresas que se pulverizam no campo da probabilidade, e no mais que de repente, pluft, se realizam ali na nossa frente ou como um bólido, vêm de encontro à gente. Foi o que aconteceu comigo enquanto fazia a minha caminhada terapêutica num dia comum desses de sol raro, da época.

Estava na minha. Só na manha, só na batidinha da aeróbica. Ritmo bom, respirando no compasso do coração. Caminhava pelo canteiro da rua e cismei de atravessar para a calçada do outro lado, alpegada do Bosque, onde grassava uma fieira de árvores pródigas na boa fresca da manhã. Trânsito tranquilo, carro nenhum próximo, pista liberada.  Do meu ladinho, a ciclovia também não anunciava ciclista chegando perto. Olhei pra trás, gente correndo, caminhando, fiz um delta tê mental e cambei pro lado. Mas foi só uma lapada. Uma trombada federal. Lei da ação e reação na mais genuína experimentação. Eu prum lado, a pequena pro outro. Caminhantes vieram em socorro. Só fiquei meio zonzo pelo susto. Fiz a autoavaliação, nada quebrado, nenhum arranhão. Volvi à batidinha da manhã. Antes soube que a pequena que trombou comigo foi aquela que vi de relance enquanto me preparava pra atravessar e que pela resultante da função horária que elaborei na cabeça, de jeito e maneira cruzaria minha frente. Ledo engano. Simplesmente a menina era velocista em plena carreira contra o relógio, concentrada, focada, mirando, impávida o rumo, na direção do nariz. Não contava com minha guinada no repente. Quando tornou, já estávamos rebolando um pra cada lado.

O campo da probabilidade é campo de minas combinações, mas escaldado na missão, acompanhando a rotina dos freqüentadores contumazes da área, não achava ser capaz de acontecer uma colisão. A galera é contida, o mais ligeiro que se abala é numa puxada aeróbica só pra acelerar a suspiração. Quem corre, vai naquele jeitinho miúdo que se reduz a um trotado doce. Quando no meu toutiço que eu ia imaginar uma velocista-raiz infiltrada naquele mosaico de tímidos fundistas?

Um choque, um acidente de tal jeito espetacular que jogou o velhinho ali, lá longe no chão, no cedo do dia e rompendo o equilíbrio da serenidade e da cadência dos exercícios triviais foi fato raro.

Éraste-te! Parece uma coisa. Reinei até jogar na Loto, nesse dia. Nada, porém, vem do acaso, do jogo duvidoso de destinos. A atleta estava errada. Estava correndo na faixa destinada a ciclistas. Por isso não maldei quando olhei pra trás. Naquele rego da ciclovia, procurei bicicletas e não gente. Até vi de relance alguém correndo, mas em função do cenário, meu cérebro não processou. Não ligou lé com cré.

Estas anomalias devem, certamente, compor nossa carteira de sobressaltos e arrepios mesmo que a gente dê pouca trela pra elas. No entanto, o que inspira cuidados, o que nos põe em alerta mesmo é o que é comum, de tal forma que passa do capaz de acontecer e chega no alto grau do bem capaz de virar um fato.

Por exemplo, ficar de palmo em cima com uma motocicleta em plena passarela para caminhantes do canteiro da Marquês de Herval de Herval é bem capaz, a qualquer dia e a qualquer hora do dia. A probabilidade é altíssima principalmente naqueles trechos em que a calçada se dispõe de forma a ligar as duas margens do canteiro. É batata. Aquele pedacinho, na boa, é usado para mudar de pista. A calçada ali, é a extensão da pista de rolamento no termo e no jeito porque sequer reduzem a velocidade quando varam de um lado para o outro. Quem caminha, quem corre, aquele ciclista que usa a parte central do canteiro, cada um que se livre e se atine ao sobressalto.

Numa caminhada pela Marquês é capaz da gente achar prendas valiosas como um cajá madurinho. Mas é bem capaz da gente se emboletar, se surpreender. É bem capaz.

sábado, 5 de abril de 2025

crônica da semana - volta grande xingu

 A Volta Grande

Do meio pro fim de março, bateu uma inquietação, uma latomia íntima. Uma saudade molhada, fluida, livre, ganhando rumo além das margens e dos horizontes finitos. Imbricada a este tempo chuvoso de recolhimento, por certo, porque o inverno amazônico é palco úmido e fértil de lembranças. Então bati, virei e mexi pelas plataformas da internet atrás de vídeos que me atendessem a demanda da memória. A cidade de Altamira foi a razão da minha vexação de momento.

É comum, aqui na região, fazer a leitura da cidade a partir do rio. Dito e certo, todas as produções tinham como ante-sala o belo, o incrível, o afetuoso traçado do rio Xingu. Aproveitei o roteiro. Foi bom rever aquela beira de rio. Procurei os points que freqüentava há quase 40 anos: Aquele restaurante insular, mimetizado em um baixão atravessado por estrada em aterro que ia dar na franja do morro do quartel; planície de vocação oleira, que nos levava discretamente a peixaria que tinha como orgulho maior, ter servido aos políticos, inclusive presidente, envolvidos na obra da Transamazônica. Tirando as ideologias dos freqüentadores, tinha uma cozinha espetacular, variedade de pratos a base de peixes da região que entontecia a gente.

Voltando um pouquinho, em frente à cidade, tinha um restaurante japonês. Ambiente alternativo, comida diferente, e um atendimento marcado pelo zelo oriental. O tempo este devastador de gentilezas, esmerou-se em me fazer esquecer o nome da proprietária, gerente, atendente do restaurante, a japonesa. Mas as lembranças de uma culinária delicada, cheia de sentidos e das reuniões que fazíamos ali eu e minha patota ficaram em mim. Não era um lugar ao comum do barato, mas pelo menos uma vez por mês, quando saía o numerário, marcávamos presença lá. Valia a pena.

Saindo da linha de margem agregada ao centro, o Xingu nos reservava áreas de lazer, banho e confraternização. Eu era fichado no Pedral. Vi agora na internet que ainda há movimento naquela prainha simpática. Folguei às pampas por ali.

Dentro da cidade, minhas referências são as ruas Pedro Gomes, Luís Né, o bairro do Premem. Com exceção de um período em que fomos alojados em um motel que que virou hotel Juruá, na primeira ladeirona da Transamazônica no sentido Belo Monte, a maioria do tempo trabalhei e morei pelos entornos do centro. No entanto, me largava também para O bairro da Brasília.

Tentei achar nos vídeos, outras referências da cidade. O núcleo urbanizado, os arrabaldes...

Tinha um chamego com o bairro da Brasília. Minha equipe de campo, quase toda morava pra lá. Fiz amizades na música, na militância católica e política que tinham casa pelos arredores da praça da Brasília. Passei muitos fins de semana comendo peixe assado, entornando uma branquinha com limão, cortando uma gíria caiapó e intentando paixões, aninhado à peãozada, na Brasíla.

No aglomerado da cidade, se quisesse me encontrar era só ir ao restaurante do Carioca. Perto do trabalho, era o local onde fazíamos a refeição diária e pendurávamos a conta no prego mais alto da parede mais ao fundo do estabelecimento. Era lá também que nos reuníamos uma turma diversa que acomodava técnicos, pesquisadores, políticos de diversos matizes e simpatizantes do bom papo. Levávamos a liberdade de pensamento noite adentro, sempre cuidando para manter o teatro de operações municiado de apreciados petiscos. Por indicação, muitos que visitavam ou faziam jornadas ocasionais no projeto em que eu trabalhava apareciam em nossas confrarias. Especialistas do Goeldi, comissões estrangeiras, até o Paulo Vanzolini e o sertanista histórico da Funai José Porfírio Fontenele prestigiaram nossa patota. Às vezes o tempo fechava quando as divergências se mostravam inconciliáveis. Carioca entrava em campo e semeava a paz. Não queria rachas incontornáveis. Era um administrador da calmaria. E facilitava no que podia. Em tempo de inflação batendo 80% ao mês, nos quitava os fiados sem a indicada correção e em noites mais inspiradas do nosso grupo, ia-se embora e deixava a chave do bar com a gente.

Muitas das minhas referências de acolhimento em Altamira não existem mais. Só o Xingu continua afetuoso, mesmo que desidratado e tendo perdido o domínio sobre a Volta Grande.

sábado, 29 de março de 2025

crônica da semana - ganhamos emilinha

 Ganhamos Emilinha

Sabe aquela coisa que a gente poderia ter feito, não fez, depois ficou se batendo, se mordendo de arrependimento?

Emilinha Borba e Adelaide Chiozzo estavam em Belém. Dariam uma entrevista na rádio Cultura pela manhã. Eu morando aqui na Pedreira, bem dizer ao pegado, na certa cultivando o ócio àquele período do dia, e fanzésimo das duas, bem que poderia ter batido perna até lá, ao menos para vê-las de longe. Não fui. Nunca vi Emilinha ao vivo.

Conhecia Adelaide (“que beijinho doce/que ele tem...”) e Emilinha (“assim se passaram dez anos...”) das sessões na TV, que em épocas distantes reproduziam no horário da tarde, filmes clássicos da Atlântida, da Vera Cruz e nos apresentavam um elenco fascinante que incluía Grande Otelo, Oscarito, José Lewgoy, Eliana, Anselmo Duarte, Tônia Carreiro, entre tantas estrelas.

Minha avó era ligada na programação e nos chamava, a netaiada pra acompanhar com ela a aventuras de Oscarito e companhia. Eram tardes maravilhosas. Que reservavam dentro de mim, preciosos guardados. O riso farto de minha avó, os elogios que ela fazia à beleza das atrizes, uma descrição aqui, outra ali, dos acessórios e balangandãs que o elenco usava nos musicais. Minha avó interagia com as cenas. Cantava as canções junto com a orquestra. Mamãe ia na mesma pisada. Se estivesse em casa, eram as duas em frente à TV. Então era um momento em que vivíamos abrigados às matriarcas, sentindo e reagindo igualzinho a elas. Nos contaminando de cenas em preto e branco e do desprendimento que a arte do cinema inocula na gente. Quando digo que sou avovozado, amamãezado, é disso que falo.

Nessa leva, virei um admirador atento de Emilinha. Acompanhei reportagens que narravam a carreira dela. Os títulos de Rainha do Rádio e as disputas com Marlene (mais tarde eu conheceria com mais detalhes, o trabalho da cantora Marlene, que, ao contrário de Emilinha, tive a oportunidade de ver em duas oportunidades aqui em Belém. No teatro com “A Ópera do malandro” e no Projeto Pixinguinha cantando, interpretando e botando pra chulear no ginásio da UFPA. Um fenômeno! Uma artista espetacular. Justifica os sucessos que teve nas disputas pela coroa do rádio. Era um furacão. Virei fã de Marlene, também).

Meu coração, no entanto, era de Emilinha. Por vários motivos ligados ao talento dela, mas, mais ainda pela relação afetiva que a cantora proporcionava dentro da minha família. Esta relação se encorpava mais ainda porque minha mãe era uma cantora doméstica, de casa, dos instantes suaves... e que me encantava. Numa época em que Belém passava por eventos de falta de luz toda noite, o falado blecaute, mamãe nos presenteava com sua voz. Atava a rede na sala, nós nos arranjávamos pelo chão, nos acomodávamos no batente da porta ou em outra rede ao pegado e nos dávamos a ouvir mamãe só na capela.

Trago nos meus guardados do coração, minha mãe cantando “Dez anos”, sucesso disparadíssimo de Emilinha. Durante muito tempo, e até hoje quando ouço esta canção traço uma ponte até alcançar a margem dos meus afetos, as tardes assistindo aos filmes com minha avó, as aparições de Emilinha nos musicais; e os tempos sem luz em Belém com mamãe adoçando o amargo da vida e clareando o escuro da noite com aquela voz de nos emocionar, nós, a filharada espalhada pela sala, amparada às emoções.

Dessa forma, e com estas marcas gravadas dentro de mim, me definindo, me guiando, quando iniciei minha trajetória nesta coluna, no final de março de 2006, optei por fazer uma homenagem a estas mulheres. Emilinha tinha morrido dias antes; minha avó reconhecia o mundo com dificuldades, entregue ao mal implacável da idade; e minha mãe, no céu e nos meus sonhos, vibrando em doçuras musicais.

“Perdemos Emilinha” foi minha primeira publicação aqui na coluna. E assim, de lá a cá, se passaram 19 anos. Penso que, em verdade, ganhei Emilinha.

sábado, 22 de março de 2025

crônica da semana - escriturário

 O escriturário e todos os nomes

Não se parecia em nada com o tipo monótono, de modos contidos, sempre discreto. Personagem quase ausente, que organiza sua rotina escondido em uma mesa no fundo da sala de uma repartição pública; ou mesmo no escritório de uma firma de médio porte perdida nos apertados de ruas do centro. Mas era ele, o escriturário, e eu o localizei ali, na ala dos brincantes mais animados.

Em verdade, o carnaval é a realização dos contrários, a menção aos invisíveis, o domínio dos rejeitados, o riso dos tristonhos, o beijo dos solitários, a exaltação dos pilheriados, a superação dos combalidos. É o céu na terra de um povo feliz. Faz a satisfação dos escriturários e outros tantos e todos os nomes que se reproduzem na sociedade. É assim como o personagem de Saramago ou um coadjuvante de algum romance de Machado de Assis marcado pelo padrão na personalidade sisuda, na postura retilínea (embora o ligeiro balanceio no andar).

Eu o vi tomado de uma alegria alheia, de um transe bom, entregue a movimentos dispersos, livres, evoluindo, soltando a voz no samba-enredo e até arriscando uma ginga de samba no pé, abrigado pela pequena multidão litisconsorte. Não parecia em nada o tipo ordinário, escravizado pelas formalidades da função.

A imagem do escriturário tão bem representado nos romances como emblema de conduta reta, adiciona mais um item ao caráter subversivo do carnaval. O carnaval é a negação do escriturário.

Ou de tantos outros e todos os nomes.

Vale a pena aqui, lembrar seu Dé. Ou Deoclidiano. Nosso vizinho de porta na vila em que morávamos na Mauriti.

Era o tipo comum e monótono. Embora o ao pegado das casas da vila nos estimulasse a intimidade, ou no mínimo, a cortesia, não dava trela pra comunidade. Entrava e saía de casa ofertando um econômico bom dia, boa tarde. Nessa ordem. Não por mal que era. Mais pelo calibre dele mesmo. Postura, jeito de ser. Era funcionário dos correios. Operário padrão com medalha colocada no peito pelo Figueiredo. Tinha todas as promoções na carreira, limitadas, claro, à função de carteiro. Nunca faltou. Respeitado na igreja, católico tradicional, ministrava palestras para cursilhistas. Em casa era homem de poucas palavras, segundo sua companheira que, taí, era bem mais dada com o pessoal da vila. Sabia dos filhos porque a vizinha lhe dava a missão do visto nos cadernos. Fora uma saída com um dos meninos no colo e o outro arrastado pela autoridade da mão, não era de estar batendo perna na rua. Era de casa pro trabalho e do trabalho pra casa...

Até chegar o carnaval...

Da feita que o sábado gordo despontava, já era. O escriturário, o carteiro, seu Dé de todos os nomes se destrambelhava das ideias. Ele desfilava em todos os blocos e escolas de samba possíveis. Entrava na vila só para trocar a fantasia. E era outra pessoa. Fazia gracinha com as crianças, carregava as vizinhas mais velhas no colo, trocava prosas animadas pela janela. A casa ficava aberta e as marchinhas de carnaval dominavam a frequência do três em um. Não se tem relato que bebia. Virava o comportamento de forma sóbria, consciente.

O carnaval e suas magias. Suas revoluções. Operações de resistência, de superação. Enredos ancestrais. Exposição de saberes ofuscados, metamorfoses pessoais. Personalidades oprimidas eclodem do centro interminável de transformações. O que se tem de desânimo ou pesar contamina-se com os ares indisciplinados da alegria.

Festa redentora que faz surgir na avenida harmonizada em cores e movimentos, uma luz, que no dia a dia do seu Dé ou daquele escriturário que identifiquei na ala colorida, infelizmente não se mostra.

Quando acabava o carnaval, seu Dé voltava a ser o carteiro condecorado, o vizinho descortês. Todos os nomes, o escriturário, voltam à sensaboria dos dias.

Pra mim, a vila perdia a graça porque gostava mais era do seu Dé destrambelhado.

sábado, 15 de março de 2025

crônica da semana - =e carnaval, oba!

 É carnaval, oba!

Este ano o desfile oficial das Escolas e Blocos de Belém acontece depois do carnaval. Esta variação de datas despertou aqui em casa uma curiosidade sobre os anos anteriores. O carnaval de Belém era antes ou depois das datas oficiais? Fomos lá, viemos cá. Fucei os meus registros e pelo menos o do ano passado eu garanto. Foi depois. O destrambelho nas idéias vem mesmo é quando a gente compara as datas. O desfile que se inicia agora neste fim de semana e se estende até o próximo, no dia 21 de março, se dá num período de mais de quarenta dias além do carnaval oficial, se compararmos os dias de feriadão de 2024. Só a terça gorda deste ano já conta perto de 20 dias de diferença com relação ao ano anterior. Este ano caiu no 4 de março contra o 13 de fevereiro do ano passado. Sem contar estas programações da prefeitura que levam o desfile ao tempo que dá, o próprio calendário que regra a festa de Momo já é de uma confusão enorme. Às vezes o carnaval cai em fevereiro, às vezes em março.

Isso ocorre porque o carnaval, em que pese o nariz torcido de uma pá de gente do bem, é uma festa pautada nas tradições cristãs. E nem adianta torcer o nariz com este moralismo toldado porque, alinhado aos hermetismos religiosos, o carnaval é uma exceção permitida. É um período em que tudo vale. A carne, principalmente e, diversamente, vale.

O tempo certo da festa muda tanto porque tem um viés sacralizado íntimo à Páscoa. E a data da Páscoa é definida a partir de um contexto astronômico.

É uma conta chata. Primeiro se marca a Páscoa. Ela acontece no domingo seguinte à primeira fase cheia da lua após o Equinócio (aqui, o contexto astronômico e o subjetivismo do dia da semana abonado pelo calendário ocidental). Aí, estando o dia da Páscoa marcadinho, se conta quarenta dias pra trás (é a Quaresma, tempo em que, diferente do carnaval, nada ou pouca coisa é permitida. É tempo de contrição e piedade) e se chega no carnaval.  Como a lua comanda a parada e a fase cheia pode acontecer em qualquer momento entre o dia primeiro e o dia 31 de cada mês, esta distribuição é que estica as possibilidades de datas tanto para a festa do pecado quanto para a da remissão. Carnaval pode ser em fevereiro ou março e a Páscoa, em março ou abril.

Mas não é preciso se preocupar com esta matemática, com a abstração dos dias da semana, com as fases da lua e mesmo com este tal de Equinócio que dá uma trabalheira danada pra explicar e é explicação que só adianta para quem acredita que a Terra é redonda levemente achatada nos pólos. Tudo vai ficar bem mais fácil. Soube por fontes seguras e não pelo zap da tia, que o Papa propôs a definição de um dia fixo para a Páscoa. Um domingo marcado assim como o nosso Círio, tipo primeiro domingo do mês tal ou segundo domingo ou aquele que valha da melhor forma para os fiéis. Entendo que é uma alternativa em estudo e que deva se submeter à secularização e teimas do alto clero, mas que, se vier, será uma mudança que virá bem. A variação de datas cairia imensamente e o impacto seria somente aquele um dia bissexto acrescido a fevereiro a cada quatro anos.

Faço gosto. Desse modo a gente se programa melhor. As agendas públicas podem ser mais estáveis e a combinação entre os carnavais mais fortes e midiáticos com os mais fracos e populares pode gerar mais prazer e mais alegria para a carne, lucidez e santidade ao espírito.

Eu por mim, descontando as quizilas de momento e um ou outro nariz torcido por causa do prolongamento da festa, já marquei foi meu lugar lá na Aldeia Cabana. É carnaval de novo, oba! Sou um entusiasta das Escolas de Samba, dos blocos. Admiro a capacidade artística e a energia, a vontade que a comunidade carnavalesca tem. São defensores desta arte. Tô com o samba de todo mundo na ponta da língua. Mas a minha torcida já sabem de quem é né.

Olha a Pedreira aí, gente!

 

 

 

sábado, 8 de março de 2025

crônica da semana - duas taças

 Duas taças

Algo de novo acontecia naquelas páginas. Uma história contada em arranjos libérrimos, sem amarras de rótulos ou de estilo, marcada por palavras proibidas e dores confrontadas. Trajetórias traçadas entre sonhos e armadilhas do destino. Uma construção adiante dos romances que eu estava acostumado a ler na época, aqueles que tinham composições dogmáticas. Não trazia a severidade estética parnasiana, nem a racionalidade mundana realista. Distanciava-se dos Modernos rincões regionalistas de Graciliano, dos versos geométricos Concretizados em vazios; e se realizava, se tornava uma história plena, comovente, acessível ao comum dos leitores. Grandiosa na essência, no íntimo humano. Entendo se tratar de uma narrativa autobiográfica. A autobiografia, ora veja, contra-indicada, atemporal, de um jovem de 20 e poucos anos (tinha aproximadamente a minha idade).

A edição que tenho, é aquela com a capa de fundo preto e destacando em primeiro plano, duas taças quebradas, impactadas por um contraste em vermelho fazendo a menção de sangue derramado. Edição do Círculo do Livro datada de 1988.

“Feliz Ano Velho” foi lançado em 1982, três anos após o acidente de Marcelo. Minha memória localiza lá atrás em Rondônia, meu primeiro contato com o livro, isso entre 1983 e 1986. Daí que acho estranho o meu exemplar datar uns anos mais distantes. Penso que em Rondônia tenha tomado emprestado de alguém e só tempos depois, efetuado a compra do meu exemplar direto com o Círculo. É importante identificar esta linha do tempo porque antes, bem antes de 1988 eu já admitia a influência decisiva do jeito, da desenvoltura literária de Marcelo Rubens Paiva na minha vida, na maneira como entenderia o fazer literário e também como definiria a minha forma de escrever dali por diante. A edição de 1988 talvez tenha me empurrado para além. Embora desde lá atrás já praticasse o desapego estético em cada livro que lia, e também nas minhas pretensões criativas, somente neste ano é que me senti seguro para elaborar e divulgar a primeira narrativa em prosa na forma que referenciasse dali pra frente, meu texto.

Hoje se tenho algumas publicações, premiações que me deram até um bom dindim; se mantenho uma coluna no jornal há quase vinte anos ou se acumulo mais de mil crônicas publicadas na internet é, também, porque um dia, dei com a extraordinária habilidade narrativa de Marcelo, disseminada nas páginas daquele livro de capa dura com duas taças quebradas no destaque em primeiro plano.

As conquistas do filme ‘Ainda estou aqui’ evidenciam uma teimosia nossa de lutar pela arte. O filme despontou após um período de desmonte em todas as frentes de trabalhos culturais. Representa, o filme, de certa forma, um renascimento das cinzas de uma fênix impulsiva, alimentada de um desejo transformador que não se pode reprimir. E mais ainda, traz, na origem, a linguagem reveladora de Marcelo Rubens Paiva (que já se mostrava para mim lá atrás, nos primeiros anos da década de 1980).

O primeiro livro dele, com duas taças na capa nos coloca no mundo de um jovem que passa por momentos de violência e dor. O desaparecimento do pai pelas mãos da repressão e a fratura da quinta cervical são traumas que ressignificam as mais simples operações cotidianas do corpo e da alma de Marcelo. O jeito como ele nos conta a história, tenho como a eficácia de uma literatura humanizada. É a técnica do dizer imediato, sem rodeios, por isso, é de toda sorte alentadora, alinhada em emoções, verdades, reconhecimentos, empatias, solidariedades. Uma maneira de escrever que me fez prestar reparo em detalhes livres de travas ou amarras. Uma narrativa que alterou meu modo de ver, de ler, entender, viver e escrever histórias. O livro com duas taças na capa denuncia um crime violento, covarde, de um regime cruel e também corrige os rumos que damos ao corpo, à alma.

sábado, 1 de março de 2025

crônica da semana - uma boa pessoa

 Uma pessoa boa

Nas últimas semanas, convivi, na rotina, com uma piada instigadora. Dizia que o jeito era a gente mudar, melhorar a conduta, ganhar vaga no lado bom da força porque, se não aguenta 10, 15 dias de calor intenso; no inferno, mergulhado na fervura eterna é que não vai se dar. O jeito é lutar para ir pro céu.

Calha dar atenção à dica. Pelo certo, experimentei este treino. Foram alguns dias fora de casa passando por tudo em quanto de termos e jeitos de uma vida além dos nossos costumes e das baixas latitudes. Vivência diferente daquela de férias ou fugidinhas rápidas. Coisa mais comunitária. Enraizada. De ir à padaria todo dia, à feira nas quintas, reclamar da coleta de lixo, cuidar com a pavimentação deficitária e traiçoeira das ruas, levar um di cumê simples que seja para o morador da calçada que ao nascer do sol, desarma seu nicho montado um pouco adiante da escola tradicional do bairro. Um período vencido a cada instante e motivado por um destaque, para nós paraenses, sem segredos. O calor.

Não deveríamos estranhar. Mas estranhamos e sentimos os efeitos do calor, na tez, no ânimo. Por outro lado, deu no aprendizado. São efeitos diferentes gerados por eventos que não conhecemos. Nos batemos com fenômenos até então apenas títulos distantes e específicos como sistema adiabático ou bloqueio atmosférico e até mesmo cavados, ressurgência... Alarmes no telefone alertando sobre notações térmicas extremas. Todos, nomes táticos compondo técnicas para explicar um céu azul azul, sem nehuma nuvem por dias e dias. E um desconforto térmico de tirar paraense da morga.

Quando ouvimos, agora voltando para Belém, o piloto do avião anunciar que estava descendo dos dez mil pés e que iniciava manobras de pouso, olhei pela janela o pacote de nuvens densas que atravessaríamos até chegar ao solo. Detive o olhar, dimensionei, aferi, estendi a visão ao maior alcance. Localizei tonalidades diferentes de cinza. Sinais de chuva. Alertei minha companheira. Taí, para que não via uma nuvem carregada faz tempo, temos aí embaixo um cardápio variado. A turbulência ao atravessarmos aquela úmida camada nos avisava que estávamos em outras latitudes, regressando aos nossos comuns dias amazônicos. Sob o comando da zona de convergência intertropical, subordinados à dinâmica da evapotranspiração e ao traçado climático equatorial que não nos deixam faltar, de jeito e maneira, e em tempo nenhum, as nuvens no céu.

Contrastes, particularidades, intimidades de um planeta que precisa ser cuidado.

Hora de se pensar as contradições, as resultantes de impacto que as alterações climáticas apresentam. Principalmente. E, é necessário que se der ênfase, principalmente quanto à intensidade dos eventos (lembremos da fervura do inferno). Precisamos urgentemente, diante do quadro de não retorno, de reformularmos políticas públicas ambientais, sanitárias, estruturais, e muitas no campo da engenharia. Precisamos entender como reestruturar as cidades para a vida com temperaturas acima de 40 graus (ou alagamentos espetaculares ou vendavais). O exemplo disso foi um acidente registrado em Magé, no Rio de Janeiro, quando um trem descarrilou por causa da dilatação dos trilhos a partir de uma temperatura medida na estrutura de 71 graus Celsius. Já pensou? Temos que redimensionar materiais e técnicas. É uma corrida contra o tempo. A Europa, por exemplo, que vem sofrendo com ondas de calor fortíssimas nos últimos anos, já tem uma vanguarda de engenharia agindo. Novos conceitos urbanos de proteção e reação, devem ser implementados com urgência para amenizar sofrimentos. O calor mata.

As conseqüências das mudanças climáticas são gravíssimas e a gente sentindo assim de palmo em cima os efeitos de um bloqueio atmosférico, se enche de dor e apreensão.

Mas tem negacionista que diz poder pagar por tudo. Mesmo diante da fervura, queixa-se ter dinheiro pra superar as alterações do clima. Não precisa sair de casa, tem ar condicionado, não tem que pegar transporte público, submeter-se ao tórrido dos dias e dos trilhos. Acha que já agora, liminarmente, usufrui do refrigério do céu.

 

 

domingo, 23 de fevereiro de 2025

crônica da semana - sacode a poeira

 Levanta, sacode a poeira

Segundo minha netinha, caí de maduro.

Coisa que tenho mais zelo é evitar os tropeços da idade. Faço as minhas caminhadas, academia, tento fortalecer os músculos, a cabeça e o esqueleto. Tanto cuidado, tanto cuidado, enchinei foi com beira e desabei na calçada um dia desses sem poder nenhum de reação.

Nenhum machucado, a não ser um latejado na ponta do dedão do pé e uma vergoinha difusa. Caiu um velho de quatro pernas.

Final de tarde, saímos para espairecer e fugir do calor causticante que consome o humor e torra os miolos aqui em terras cariocas. Um passeio na praça com a netinha até a chegada da noite, que aqui, só acontece perto das 19 horas; a ilusão de um alívio na temperatura e voltamos para casa. No meio do caminho, aliás, em boa parte do caminho, o calçamento é deformado pela exposição ou elevação de raízes das árvores que resistem à margem da rua. Por isso, em muitos pontos a calçada se quebra e forma desníveis radicais. Num deles, patetei, desviei o olhar e só senti o pé dando de encontra com uma face saliente de pedra. Perdi o equilíbrio. E aí é que vem a parte da tensão e da graça da Santa Nazinha nossa paraense. Minha netinha vinha andando de mãos dadas com a gente, comigo e com a avó (o que faz parte da valência da Virgem de Nazaré, já que na maioria das vezes, por causa da travessia da rua, ela vem no meu colo). No entanto, mesmo a neta no chão, quando desequilibrei, senti que podia puxá-las ela e Edninha, junto. E seríamos dois, três tombos de uma vez. Na outra mão eu trazia uma sacola de supermercado com pequenas compras, mas com força suficiente para me lançar para frente. Foi o que se deu. A sacola fez o pêndulo e me tirou a possibilidade de reagir à queda. Mais que depressa quebrei a correntinha que nos unia, larguei a mão da neta e desabei para frente. Tudo aconteceu de uma forma bem cadenciada. Do jeito de uma cena em câmera lenta. Tenho consciência de todas as etapas da queda. Acho que por causa de uma sequência de movimentos que, particionados,  poderiam até evitar minha queda, mas por acasos desafortunados foram neutralizados. Assim, pude medir e analisar o tombo e, olha só, este domínio da cena me deu condição de definir o final daquele tropeção. Decidi por uma queda digna em rolamento lateral. Tentasse evitar, o resultado seria bem pior, com maior atrito, mais travas de corpo e tendência a deslizar e me ralar todo ou sofrer uma luxação, fratura. O que fiz foi largar o corpo, fazer o giro e me deixar levar. Uma queda espetacular, mas sem nada quebrado, sem sangue, arranhões ou raladuras. Juntou gente, passantes, populares vieram ajudar, tive aquela reação envergonhada sim, mas no frigir dos ovos considerava o fato positivo de estar tudo pelo certo. Retomamos o caminho, nos permitimos umas pilhérias já que estava tudo bem. A neta, ainda meio desconcertada saiu com essa de o vovô caiu de maduro e relaxamos. Sacudi a poeira seguimos caminho acreditando que vale a pena cuidar do corpo e, se caí, foi, em boa parte, culpa de uma configuração urbana que nos abandona, os vovôs, mas também as crianças, os adultos...

(Importa sacudir a poeira e seguir em frente. Eu fico abismado quando alguém ataca a Educação. E, nos tempos atuais tão sem tino, pipocam de todos os lados agressões. Quando não atentam contra métodos, insultam professores; quando não negam políticas ou diretrizes educacionais, solapam a carreira de educadores, encaminham reduções em planos salariais. Acontece nos quatro cantos deste país. Aconteceu no Estado da COP 30, na batida da campa do ano passado e foram ações que causaram sofrimento, frustrações e dor. O que aconteceu no Pará foi um caso claro de queda que resultou em muitos arranhões. Mas por outro lado, gerou resistência. Quem acredita que a educação muda vidas levantou, sacudiu a poeira e agora, segue em frente).

 

sábado, 15 de fevereiro de 2025

crônica da semana - imagens maravilhosas arpoador

 Imagens maravilhosas

Isso é que dá mudar o programa em cima da hora. Logo eu que sou chato pra essas coisas. Não me avio com saídas além dos trilhos. Me apraz o roteiro todo certinho calculado na introdução, desenvolvimento e conclusão, inclusive com a certificação de lanchinho para dar sustância, no entremeio da programação e transporte à hora para voltar pra casa. O que ocorreu é que mudamos o plano.

A idéia era fazer um traçado de visita aos museus do centro. Desconcentramos e quando demos fé, já era de tarde. Fiz a conta, deduzi os novesfora e concluí que não iria dar tempo. O objetivo era esticar o que desse e concluir o itinerário na Pequena África. Só que já chegaríamos lá ao cair da tarde, com tempo mínimo para conhecer. E lá não pode ser com pressa, muito da história de africanos escravizados está ali. No rumo do metrô, alteramos o passeio. Decidimos pelo tradicional, e de forma alguma descartável, pôr do sol na pedra do Arpoador. Uma boa, até porque ainda não havíamos acompanhado o cair da tarde nesta época do ano, de solão de rachar. A mim, especialmente interessou a possibilidade de registrar a distância de ocultação do sol com relação ao morro Dois Irmãos, agora pelo verão e caminhando o astro-rei para o Equinócio. Sou metido a apreciar e entender esses detalhes astronômicos, né.

Tudo pelo certo, chegamos ainda com o sol ardendo no cocuruto. No caminho para o Arpoador, resolvemos fugir dos raios UV e demos um tempo espairecendo pelo parque Garota de Ipanema, que fica ao pegado da pedra. Sentamos num banco para apreciar o movimento, nisso, demos com uma placa indicando a localização de um mirante, com desenho de mapa e texto estimulando a subida até lá: “você fará fotos maravilhosas”.

Titubeamos. A ladeira era bem inclinada. Pouca sombra no caminho. Mas ousamos explorar. Reforçamos a camada de protetor solar e rumamos pra riba. Um jovem casal que também estava na dúvida, quando nos viu partir, partiu atrás. Fizemos duas paradas para descansar e aproveitar uma nesguinha de sombra dos poucos ramos de árvores que se projetavam sobre a rampa. Passaram à frente e quando varamos no mirante eles já estavam lá expostos àquela luminosidade de encandear e torrando no sol. Aquele ambiente, pelo menos naquela hora do dia, não expressava o que dizia a placa. Até que tínhamos uma visão de parte da praia de Ipanema, mas para captar uma imagem boa exigia uma ciência que não tínhamos. A luz intensa empastelava pra valer e estourava nossas fotos. Foi quando identificamos uma trilha se estendendo sobre a mata remanescente, à ombreira do morro. Deduzimos que pra’quele lado talvez houvesse outro mirante ou coisa outra aprazível que justificasse o arrazoado da placa. Nos embrenhamos.

Éramos só nós dois, eu e minha companheira Edna, nos deslocando naquela picada. As pessoas já garantindo lugar lá embaixo na pedra para contemplar o pôr do sol e a gente inventando marmota de explorar, de buscar fotos maravilhosas.

Mais adiante, bateu o medo comedido. É que, no repente, identificávamos alguém naquele estirão solitário. Aqui, um casal de rapazes sempre à margem do caminho, com um olhar desviado; ali, uma turma desconfiada. Alguns quando nos viam, entravam mais do que depressa na mata. Eu tentava demonstrar calma à minha companheira, dado o contexto. A gente não é da barra, não conhece as manhas... lugar ermo, e quem aparece se esconde ou recolhe o olhar em silêncio. E com jeito de que não estavam ali atrás de fotos maravilhosas. Estranhamos. Eu sei que é errado a gente maldar. Não minto não. Teve momento que deu vontade de sair dali nas carreiras.

Quando avistamos a saída lá embaixo, pensei que, o que estivessem fazendo, fosse da parte do amor e do carinho, era melhor que continuassem, afinal não estávamos ali para julgar ninguém, somente para captar imagens maravilhosas.